Que a nossa vida é recheada de perplexidades, estamos todos de acordo, e cada um, se estimulado a catalogá-las, elegerá a seu gosto uma mais absurda do que a outra. A minha, desde que comecei a conviver com doentes de todas as idades e condições sociais e descobri o fascínio de ajudá-los, nada me machucou mais do que a doença na infância.
Nem os religiosos, que ficam aliviados por atribuírem tudo à vontade desse Deus que sabe o que é melhor para seus súditos, tiveram argumentos ou ânimo para tentar dar um sentido ao sofrimento de um pingo de gente que nem viveu o suficiente para identificar o bem e separá-lo do mal, este entendido como merecedor de castigo. Menos ainda entendi quando uma criança nasce com um defeito congênito irreparável que lhe retira qualquer chance de sobrevida, tornando explícito que ela veio ao mundo só para sofrer.
Por conta desse meu condicionamento emocional, a história contada pelo Milton Meier, um dos precursores da cirurgia cardíaca pediátrica no Brasil, exigiu que eu me desse um tempo antes recontá-la, porque, como vocês verão, ela não é para desprevenidos.
O Milton Meier, a grande unanimidade afetiva da Academia Nacional de Medicina, começou a atender o Julio desde que ele tinha 15 dias de vida, quando se descobriu que ele batera à porta desse mundo arroxeado e arfante, por um defeito cardíaco em que lhe faltava um dos ventrículos, encaminhando-o para uma sucessão de procedimentos cirúrgicos, arriscados, dolorosos e meramente paliativos, sem expectativa real de chegar à vida adulta.
O filho estava outra vez azulado, como nascera.
Como o Milton é o tipo de médico que todos queremos ter, aquele que nunca desiste do paciente, entregou-se à abnegada tarefa de dar ao Julinho a vida mais digna e longa que seu grande talento cirúrgico pudesse oferecer. Em um tempo marcado pela esperança ilimitada dos pais, encantados pela gana de viver do filhote, ele foi submetido a quatro cirurgias, buscando reparar as incorreções da natureza relapsa.
Na primeira infância, Julio chegou a ter um período de melhora, mas com limitações: apenas andava, enquanto os outros meninos corriam. Se agachava quando os outros pulavam. Quando completou oito anos, e já tendo sido submetido à cirurgia dos dois lados do peito, estava azulado outra vez e novamente tinha que ser operado. Como já crescera nele, além de pernas e braços, a noção do perigo, arriscou-se a questionar: "Tio, será que eu saio desta?".
Meio desconcertado, Milton respondeu: "Dessa o quê, Julio?" Titubeante, como se contasse um segredo, Julio perguntou-lhe, baixinho: "Eu vou morrer nessa operação?". Hesitou um pouco e acrescentou: "Tio, eu não quero morrer!".
Ainda não foi daquela vez. Viveu mais alguns anos. Muito poucos. Apesar de cada vez mais limitado, era uma criança alegre. Frequentava a escola, depois o curso ginasial, era inteligente e muito bom aluno. Julio lia muito, gostava de ver bons filmes. Aproveitava cada instante como se fosse o ultimo, intuindo que seria.
Um dia, Milton soube que Julinho estava na UTI, e a mãe ligara pedindo-lhe que fosse vê-lo. O filho estava outra vez azulado, como nascera. As artérias do pulmão não suportaram mais a pressão elevada e entraram em falência. Julio estava morrendo… e só tinha 14 anos. Aquela idade em que todos tivemos a deslumbrante certeza de que a vida estava apenas começando!
E Milton, no comando dessa narrativa, com grande esforço, modulou a voz para contar o resto dessa história. E transferiu o choro para o final, quando não lhe faltou companhia: "Poucas vezes fui a enterros de pacientes. Nunca me conformei com a morte, jamais de uma criança. Fui ao enterro do Julio. Muito triste, fui falar com os pais. Quando abracei a mãe, falei 'Não tenho o que dizer para você'. 'Mas eu tenho', ela retorquiu entre lágrimas. 'Você me deu o Julio por 14 anos!' Somente para ouvir esse agradecimento já valeu a pena ter vivido!"