A capacidade que o sofrimento tem de depurar o caráter humano é reconhecida desde sempre. Nas grandes tragédias, o melhor e o pior de todos os envolvidos se escancara com inegável crueza das reações que, por terem emergido em situações de improviso, não puderam ser maquiadas, e com isso desnudaram as facetas boas ou escabrosas dos seus personagens.
Depois que o cataclismo passou, a depuração das personalidades continua revelando através da empatia ou da indiferença como nos comportamos na prestação do socorro mais elementar às vítimas da catástrofe, na organização de mutirões para que se reúna objetos de primeira necessidade, capazes de encher caminhões que, mais do que bens de consumo, transportam esperança e solidariedade.
Muitos se contentaram em fazer doações, para que os gestores públicos dessem aos valores coletados o melhor destino. Outros se envolveram pessoalmente, dirigindo-se ao local da catástrofe para oferecer uma ajuda concreta, como um consultor econômico com dotes de cozinheiro que instalou uma barraca na margem do rio e ficou lá, alimentando os famintos que, mais do que suas casas, tinham perdido o rumo do futuro imediato.
Enquanto a busca de cadáveres insepultos prossegue, percebe-se o quanto as reconstruções dependerão de uma força interior que os envolvidos nem supõem possuir.
Difícil imaginar a dor daquele homem jovem que viu a correnteza levar sua esposa e duas crianças pequenas, deixando como rastro o desafio, inconcebível num primeiro momento, de encontrar forças para recomeçar.
Relatos dramáticos povoaram a mídia durante muitos dias, até quando a natureza parecia ter dado uma trégua mas a meteorologia antecipava o risco de novas enchentes, e alguém aparentemente recém chegado de outro planeta anunciava com rara infelicidade. pelo inoportuno das circunstâncias, que o Rio Grande do Sul devia considerar estes eventos como parte do "nosso novo normal". Como se tivesse alguma utilidade esta informação, no momento em que o número de desaparecidos sinaliza que a catástrofe ainda não terminou.
Manifestações de pesar e solidariedade continuaram chegando de todos os rincões do Brasil e serviram para, de alguma maneira, atenuar o desconforto de um texto de julho que voltou à baila pelas redes sociais, em que um inexpressivo cronista da Folha de S. Paulo, de maneira abjeta e estúpida, conjecturava sobre as razões das enchentes castigarem os eleitores de Bolsonaro, no Sul. Difícil acreditar que um diário da dimensão da Folha ainda dê acolhida à tamanha pobreza espiritual.
Enquanto a busca de cadáveres insepultos prossegue, percebe-se o quanto as reconstruções dependerão de uma força interior que os envolvidos nem supõem possuir. Esse esforço, que deve ser de toda a sociedade, se ampara nos relatos de puro heroísmo que brotaram da intransferível luta pela sobrevivência. Como o pai que transportou a família para o topo da escada, depois o sótão, e por fim a cumeeira da casa, com a expectativa desesperada de que ela fosse mais resistente do que as casas vizinhas que passavam ao largo, debulhando no leito do rio enfurecido.
Impossível não se comover com a experiência da Elisabete, que reuniu na mesma jornada virtudes pessoais impressionantes como coragem, determinação de viver e inesgotável amor filial. Ela precisou muito de tudo isso, para pernoitar agarrada a um sofá, que providencialmente boiava na sala de jantar.
Se este esforço lhe parecer pouco, imagine que ela passou a noite toda segurando pela mão a mãe morta, para que a enxurrada de lama não lhe roubasse o que sobrara dela.