A dona Margot veio encaminhada de Ribeirão Preto, com aquele sotaque que parece mineiro, mas não é. Tinha um tumor de costela, bem localizado, com excelente chance de cura, e uma história de dor contínua, de intensidade crescente e que, no dizer dela “azucrina dia e noite!”.
Aceitou a cirurgia com o entusiasmo que caracteriza os sofredores, que percebem na operação a barganha mais justa para voltar à vida normal. Uma situação completamente diferente do paciente que, durante um check-up, descobriu uma lesão assintomática, para o qual a proposta de cirurgia sempre parecerá agressiva e injusta, porque normal era como ele já estava se sentindo antes desse achado diagnóstico precoce, que os médicos festejam mais do que o proprietário da doença. Nessa condição, por mais que os médicos insistam que ele teve muita sorte, ele seguirá cismado com o azar de ter adoecido.
Ela foi operada dois dias depois, e no quarto pós-operatório teve alta. Por ocasião da despedida, fez uma confissão curiosa:
— Eu sempre faço meus médicos saberem o quanto eu gosto deles, mesmo que seja só para retribuir o que fizeram por mim!
Quando eu ia agradecer, meio a contragosto, porque a generalização do agradecimento assumia que eventualmente fingia gratidão só para ser cordial, ela completou:
— Mas do senhor eu não precisei fazer força para gostar!
Ela terminou de colocar suas roupas numa mala de casca dura, enrolou no pescoço uma manta marrom, com franjas de couro nas pontas, e partiu.
Às vezes, basta a linguagem corporal para decidirmos que uma determinada criatura não vale o nosso tempo.
Fiquei com essa declaração de amor, assim, original, martelando. E percebi o quanto são aleatórios os critérios de seleção com os quais nos apegamos gostando, ou não, de uma pessoa. Às vezes, sem nenhuma justificativa consciente, nos afeiçoamos definitivamente a um tipo que em nada difere de alguém que passou batido com a marca da indiferença. Outras vezes, basta-nos a linguagem corporal, que muitos consideram a menos confiável de todas as linguagens, para decidirmos que uma determinada criatura não vale o tempo que seria necessário para descobrirmos se ali tem alguma coisa que justifique o investimento, porque estamos preconceituosamente convencidos que não.
Noutras tantas, o convívio traz o encantamento de descobrirmos que estamos diante de uma espécie rara de gente: aquela de quem quanto mais conhecemos, mais gostamos, na contramão do que ocorre com maioria das pessoas, ainda que esse desfecho maravilhoso não fosse previsível no início.
Naquele mês de tantas homenagens e comemorações, algumas justas, outras exageradas, foram inevitáveis as reminiscências de lições inesquecíveis que nos legaram os mestres maiores, esses verdadeiros agrimensores espirituais, responsáveis pela demarcação dos nossos territórios afetivos.
Na consulta a uma gaveta de coisas imperdíveis, em um cartão de papel delicado, datada do inverno que antecedeu a morte do meu primeiro grande mestre, Ivan Faria Correa, resgatei dele esta pérola de sabedoria: “Existem 3 tipos de pessoas: as que gostam da gente de qualquer jeito e são tolerantes e tendenciosas, as que não gostam de jeito nenhum e não há nada que possa ser feito por elas, e as que ainda não se decidiram. Cuidado com as últimas, porque delas não sabemos o que esperar, até que se decidam!”.
Meu mestre querido morreu muito cedo e antes que eu estivesse pronto. De vez em quando, ainda sinto a falta dele, latejando em mim.