No início da minha experiência com transplante de pulmão, fiz inúmeras captações do órgão, muitas vezes em cidades longínquas. Sempre me impressionei com a riqueza dos sentimentos que regem as relações dos profissionais envolvidos nessa missão.
A solidariedade sempre foi dominante, e os gestos de apoio, de uma espontaneidade comovente. Ofertas de lanches ou sacola de frutas para a viagem de volta eram frequentes, com todo mundo deixando claro o reconhecimento com a grandeza da tarefa: afinal, estávamos transportando a esperança de pessoas doentes e que dependiam daqueles órgãos para retomar a vida.
Nessas excursões, muitas delas em madrugadas insones, várias vezes minha atenção desviou para a proximidade dos familiares do doador, uns desconhecidos que perambulavam pelos corredores e eram identificados instantaneamente pelo ar de inconfundível tristeza.
Em Santa Maria, a mãe do doador, um jovem de 18 anos, interrompeu a nossa marcha na saída do bloco cirúrgico, colocou a mão espalmada sobre a caixa de isopor e se despediu:
— Vai lá, meu filho, e salva as pessoas como tu prometeste quando disseste o quanto querias ser doador. Depois disso, Deus vai cuidar de ti!
Outra vez, em Tubarão, saindo pelo corredor e arrastando o carrinho barulhento contendo as quatro caixas de múltiplos órgãos, nos deparamos com uns sete ou oito familiares que olhavam o cortejo médico, à distância. Havia tanta tristeza no olho daquela gente, que mudei o rumo e fui me despedir deles. Não consegui falar, mas vou sempre lembrar a força do abraço. No voo da volta, a frase final do pai do adolescente ficou martelando em mim:
— Doutor, por favor, cuide bem do que restou do meu filho. Ele queria ser médico.
Passado o tempo meio maluco em que viajávamos para a captação do pulmão e voltávamos exaustos para implantar o órgão, o grupo cresceu, as funções se diluíram e depois de 650 transplantes, a rotina ficou mais racional e até o cansaço foi democratizado.
Mas conversando com os mais jovens, que assumiram a captação, se percebe que aquelas emoções essenciais – essas permanecem intactas. A Fabíola Perin, que ostenta com um orgulho mal disfarçado o epíteto de “única cirurgiã brasileira que transplanta pulmões”, trouxe a sua contribuição, só para confirmar que tudo o que envolve sentimento é para sempre:
“Semana passada fui para mais uma retirada de pulmões de um doador. Nenhuma delas é igual e não há como não se envolver com a história de quem está doando, porque é sempre o amor de alguém, o amigo de alguém, o filho de alguém. Nesse dia, deparei com um garotinho de quatro anos, o rosto não pude ver, porque estava parcialmente coberto pelo grande curativo do ferimento craniano, causa de sua morte, mas sua mãozinha, gordinha, com alguma sujeira nas unhas de quem há poucos dias devia estar brincando na terra, estava à mostra e esta meu coração viu. Tudo isso em silêncio, segui o meu trabalho”.
Linda história, só para renovar a minha convicção antiga, do quanto aqueles que dizem que enrijecemos pelo convívio com a dor dos outros não têm a menor ideia do que significa, de fato, ser médico.