Nada mais natural do que repetirmos o que nos dá prazer, e isso faz com que as nossas reminiscências mais carinhosas envolvam uma doce nostalgia, que marca as vivências que, tendo sido maravilhosas, mereciam ter se materializado e não ficarem reféns no recesso inseguro da memória, esse escaninho ora displicente, ora presunçoso e sempre vulnerável à traição ou ao esquecimento.
O retorno aos lugares onde fomos felizes, por significar uma viagem ao passado, tem esse efeito recapitulador das nossas lembranças mais ternas, quase sempre dependentes das coisas mais simples que precisam ser regadas de afeto para que não desidratem e morram. Menos mal que nossas exigências afetivas mais nobres estão atreladas às pequenas coisas, e essas sim temos de vigiar com muito cuidado, porque, como advertiu Tejada Gomes, “a las cosas simples las devora el tiempo”.
Estou cada vez mais convencido de que nada é tão importante para a preservação da dignidade ao envelhecer do que a manutenção, intacta e incondicional, dos nossos afetos antigos. E eles precisam ser periodicamente sacudidos para varrer a poeira do tempo, estejam onde estiverem arquivados. Curiosamente, quando ficamos tristes ou saudosos, e quase sempre os dois juntos, ou um por conta do outro, acabamos nos lembrando das mesmas poucas pessoas que tiveram significados definitivos, em momentos determinantes das nossas vidas, e que precisam, obrigatoriamente e sempre, estar aos cuidados dos imprescindíveis guardiões da saudade.
O Professor Tarantino, sobre quem já escrevi, foi uma dessas marcas na minha vida. Um dia, recebi dele, no meio da tarde, um chamado surpreendente:
– JJ, me dei conta de que a notícia da minha morte, velho como estou, não surpreenderá mais ninguém. E resolvi tomar providências enquanto ainda estou no comando. Então anote aí: assim que minha filha lhe avisar que morri, tome o primeiro avião e venha para o Rio. Preciso de você aqui, falando no meu enterro, porque poucos sabem tanto da minha vida. E não esqueça: se o que fiz não lhe parecer bastante, exagere. E se ainda achar que é pouco, minta.
Como se a vida dele já não fosse um exagero! Impossível voltar à Academia Nacional de Medicina e não lembrar, a cada vez, da falta que me faz aquela figura inteligente, irônica, provocativa e muito, mas muito, amada.
Durante anos, mantive com meu pai uma tentativa frustrada de reduzir a distância geográfica, num ritual de conversas diárias, entre 18h30min e 19h, de segunda a sexta-feira, naquele curto intervalo em que saía do consultório e passava no hospital para a última revisada antes de ir para casa. Como a janela era de, no máximo, 15 minutos de conversa, não havia tempo a perder com introduções. E então, para demonstrar que ele se preparava para o telefonema, logo depois do alô, já desatava a me contar alguma coisa que – ele tinha decidido – seria o nosso papo daquele dia. E do que falávamos? De qualquer coisa em que não houvesse espaço para queixas. Viciei de tal maneira com o otimismo do meu pai que, várias vezes, depois que ele morreu, me vi de celular na mão, carente por uma palavra, qualquer palavra, que me ajudasse a acreditar. Hoje me parece fácil entender por que, 12 anos e cinco trocas de celular depois, ainda não consegui retirar o nome dele da minha agenda. Saudade do meu velho.