O Odorico era um tosco. Muito. Mas a autenticidade era sedutora. Muita também. Descendente de índios, tinha um passo meio arrastado e sorria só com os olhos.
Por ter vivido mais do que a média dos brasileiros, se tornara um brasileiro sábio. Sem o verniz da escolaridade, mas com sensibilidade inata e uma tendência muito curiosa de explicar os problemas do cotidiano a partir das suas próprias crenças. Para ele, peão de estância a vida toda, e responsável pelo cuidado diário das vacas prenhes, o frio desfavorecia a infecção, e não por acaso o mês de agosto era o mais adequado para o nascimento dos terneiros. “Com o frio, o umbigo fecha rápido e sequinho.” A primeira vez que ouvi referência a este cuidado foi no pós-operatório dele, quando apresentou uma infecção leve de parede, e quando tentava explicar-lhe que aquela era uma complicação comum ao se operar doenças infecciosas, ele nem parecia ter-me ouvido, e comentou:
— Meu doutor, isto é culpa minha, eu não devia ter me achado um bicho diferente dos outros, e não podia ter me operado no calor de fevereiro!
Na opinião dele, se os rituais do conhecimento campeiro não fossem seguidos, não carecia rezar, porque não adiantava. Talvez por isso não fosse muito apegado a práticas religiosas. Para ele, a vida campesina, dura e implacável, era ao mesmo tempo escola e religião. Depois de uma operação que fizemos, e que afastou seus fantasmas de morte por sangramento pulmonar, ele claramente me elegeu como “o meu pajé” e nos anos que se seguiram, muitas vezes me procurou para que o ajudasse a resolver problemas de saúde, seus ou dos seus. Agora estava internado na unidade de Oncologia com um câncer de uretra e mandou um bilhete pedindo que fosse vê-lo.
A ajuda que ele precisava, essa sim, era original: ele estava brigado com o capelão e achava que eu, “todo letrado e tal”, devia ter uma solução para amenizar a bronca que levara do padre, que desistira de visitá-lo porque ao ser perguntado se ele acreditava em Deus, respondera com toda a sinceridade, que era o seu único jeito de responder, que “acreditar ele até acreditava, mas o problema era que já não simpatizava mais com Ele”.
Com esta introdução, resolvi fazer uma “anamnese espiritual” e perguntei: “Mas desde quando esta antipatia?”.
— Ah, doutor, foi bem triste. A minha velha adoeceu de doença de mulher e começou a sangrar. Apelei pros médicos lá da minha cidade e eles demoraram muito até que conseguiram uma vaga aqui na Capital. Aí demoraram outro tanto pra autorizar a ambulância e viemos com a operação marcada para o dia seguinte, bem cedito. O senhor acredita que, depois dessa correria, Ele, todo metido a poderoso, deixou que ela morresse nos meus braços durante a viagem, apesar de todas as minhas rezas? Então virei os arreios e nunca mais rezei!
— Mas, Odorico, com a sua história me parece que a maior culpa foi da burocracia...
— O senhor acha mesmo? Mas então a minha ida pro inferno tá assegurada, porque o que eu falei mal Dele depois da morte da minha velha foi uma barbaridade! E agora ainda respondi torto pro padre, que podia me ajudar a consertar as coisas com O lá de cima!
Tentei confortá-lo dizendo que uma pessoa boa, como ele, podia acertar as contas direto com Deus, sem intermediários, mas ele argumentou:
— Bueno, mas me disseram que o padre pode arranjar o tal do perdão e então achei que ficava mais garantido!
Assegurei que Deus considerava a pureza a mais genuína das religiões e que esta já vinha com o perdão incluído. Mas ele continuou com a cara desconfiada. Deve ter percebido que eu também não tinha lá tanta certeza.