Nossa vida deveria ser avaliada pelo número de vezes em que geramos fatos inesquecíveis. E nem importa se foram coisas maravilhosas de que lembramos com encanto ou essas que esqueceríamos se pudéssemos. Viver, de verdade, é encher o calendário de aniversários.
Cinco de setembro de 1971 era um domingo. Aproveitei uma folga na residência médica e fui passar o fim de semana em Vacaria. Naquele dia, estava programado o desfile antecipado, comemorativo aos 149 anos da Independência do Brasil. Numa cidade pequena, a parada do 7 de Setembro sempre foi um acontecimento. Os colegiais desfilando orgulhosos com o uniforme colorido de suas escolas e as bandas enchendo as ruas dessa alegria esfuziante que o tempo, displicente e preguiçoso, só tem feito dissipar.
O desfile passava pela avenida principal que fazia esquina com a rua da casa do meu avô. Fui até lá com a certeza de que o encontraria, o que, pra mim, era uma dessas festas em que o afago dispensava a banda.
Com a família empenhada em buscar o melhor ângulo para assistir ao desfile que já rufava ao longe, descobri, frustrado, que meu vozinho não estava. Com a alegação de uma indisposição, ficara em casa. Decidi que a festa do ano seguinte, sesquicentenário e tal, deveria ser ainda mais bonita, de modo que perder a daquele ano para afofar meu avô justificava a minha saída sorrateira. Desci a rua e encontrei-o na poltrona preferida, com olhos recém chorados. Assustado, lembrei que, um dia, ao comentar, debochado, que ele era um chorão que chorava por qualquer coisa, ele me repreendeu, dizendo: “Nada disso, eu só choro por coisas importantes e não sou culpado da quantidade de coisas importantes que têm ocorrido na minha vida!”
Com cuidado, quis saber, então, o que tinha acontecido daquela vez.“O Brasilino era um ano mais velho e o meu irmão mais querido. Não lembro de que tenhamos discutido uma única vez na vida. Foi meu melhor parceiro e compartilhamos muitas coisas. Foi assim que, juntos, compramos a primeira terra, ali no Passo do Carro e, quando nos preparávamos para cercá-la, decidimos que cada um começaria numa extremidade depois que percebemos que, se trabalhássemos no mesmo ritmo, nos encontraríamos no meio da colina, que seria o ponto ideal para se colocar a porteira de entrada da fazendola. Num 5 de setembro, como hoje, há 50 anos, a cerca tinha ficado pronta e termináramos de instalar o portão que marcava o meio do caminho e o fim do nosso desafio. Quando passei a tranca, vi o Brasilino de braços abertos, nos abraçamos e choramos o choro de que mais gosto de lembrar dos muitos que chorei antes e depois daquele dia. Agora, meio século passou, o Brás já não está mais aqui, eu sinto muito a falta dele e acabei recapitulando aquele choro. Achei que Dom Pedro perdoaria a minha ausência na avenida se soubesse dessa história.”
Ficamos um longo tempo de mãos dadas, em silêncio, até que a família voltou para casa trazendo o alarido do fim de festa. Desde então, o 5 de setembro passou a integrar o meu calendário de afeto, quando homenageio meu avô e a sua saudade de um choro tão bom que ainda continuava vivo, 50 anos depois de ter sido chorado.