Havia uma serenidade sem amargura nas palavras do Maicon, só um realismo incomum. Desde o começo da doença, foi revelando essa resignação sem desistência que só se encontra nos fortes que não desperdiçam energia em lamentos ou fantasias. O que mais se assemelhava a uma queixa era a intolerância com promessas que nunca se cumpririam.
Quando quis saber de onde tirava toda a coragem, ele resumiu: “Que bom que dou essa impressão, porque odeio que alguém possa ter pena de mim. Então, se minha atitude parece corajosa, quer dizer que estou desempenhando bem meu papel. Na verdade, doutor, medo é o que mais sinto, mas meus pais, velhinhos como são, não precisam ser torturados com uma situação em que não saberiam o que fazer e a impotência os liquidaria. Ontem, minha mãe esteve aqui e, depois que lhe disse o quanto estava melhor, ela começou a me contar como está preocupada com meu pai e suas mudanças de humor. Discutimos estratégias para enfrentar a dependência gradual do meu velho e, quando ela saiu, fiquei agradecido por ela não ter percebido que rabugice não mata e, de qualquer maneira, não viverei tempo suficiente para contribuir com o futuro que combinamos!”.
Qualquer procedimento indicado para desacelerar o crescimento do seu tumor de fígado era precedido por uma bateria de perguntas sobre os riscos que correria, tempo de terapia intensiva e expectativa de internação mais prolongada, para que pudesse planejar o melhor dia da semana, quando sabia que todos estariam absortos com suas vidas saudáveis e não ficariam em torno dele numa vigília tensa e improdutiva.
Sempre me impressionei com aqueles que, diante de uma grande ameaça, são capazes de manter o controle emocional para estabelecer prioridades e proteger a família de um sofrimento que só a eles cabe administrar. Como atestado de grandeza, evitam disseminar ansiedade entre aqueles que até gostariam, mas não têm como ajudar. Atribuir essa conduta à maturidade parece pouco. Há mais do que isso nesse esforço de proteger os seus de uma provação desgastante e inútil. Há uma enorme coragem em guardar para si o que aos outros machucaria daquele jeito que só sabem machucar as dores dos nossos amados. Uma tarde, o encontrei distraído, brincando com o celular e, de vez em quando, sorria. Confessou, então, ter encontrado uma tarefa divertida: “O senhor acredita que tenho mais de 500 criaturas na minha agenda? Pois só descobri isso agora, o que quer dizer que fui depositando lá contatos que nunca farei e agora percebi que, se recebesse a missão de contar minha triste história para 10 agendados por dia, eu não conseguiria, porque tenho certeza de que não viverei o tempo necessário. Então, antes que tivesse a chance de me deprimir, tive uma ideia para gastar o tempo que me resta, com alguma diversão: primeiro vou deletar os chatos, incluindo os síndicos e os vendedores de seguro, a seguir os que nunca mostraram a cara fora dos grupos de Whats, depois os que não tenho a menor ideia do que estão fazendo no meu celular porque não lembro deles, depois os parentes que nunca apareceram. Assim, na véspera, só restarão os meus favoritos, e desses vou poder me despedir com calma”.
Ele morreu sem véspera, numa madrugada de sábado, aos cuidados de um irmão caçula. Dias depois, esse irmão me procurou: “Doutor, eu sei que ele gostava muito do senhor e, então, talvez possa me ajudar. Naquela noite, ficamos conversando até tarde, e ele parecia bem. Lá pelas duas da manhã, fui dormir e me acordei ao amanhecer, quando a enfermeira entrou no quarto e o encontrou morto, com o celular vibrando sobre o peito descoberto, e no visor estava escrito ELA. O senhor tem ideia de quem ELA possa ser?”. Eu suspeitava que sim, mas disse que não. Recomendei que deletasse logo, porque nunca morremos sozinhos. A morte, além de impiedosa, é sempre coletiva, e arrasta nossos amores, secretos ou não. Com a morte DELE, ELA morria também. Combinamos assim. E pareceu justo.