O atual sistema de saúde pública respira com ajuda de aparelhos porque, lá na sua origem, não houve a preocupação de provê-lo de recursos para acompanhar as mudanças impostas por duas variáveis previsíveis e que se revelaram devastadoras para um modelo romântico, surreal e meio demagógico: o incremento exponencial de dependentes em função da falta de planejamento familiar da população mais necessitada e o aumento real do custo da medicina moderna enriquecida de tecnologias em constante evolução. Ninguém ousaria considerar lamentável o aumento da idade média da população, observável em curva ascendente a cada década, mas também nenhum gestor pode ignorar o quanto a festejada maior longevidade acrescenta de despesas com o cuidado de mais doenças degenerativas.
Na medida em que o custeio da saúde pública ficou insustentável, os planos privados de saúde suplementar assumiram um protagonismo cada vez maior e, como não podia ser de outra forma, com visão empresarial, o que transformou os pacientes em clientes externos e seus tratamentos em códigos e números que passaram a ser regidos por projeções e metas. Para a prosperidade do negócio saúde, a figura do médico passou a ser considerada essencial, porque, afinal, ele não podia sair por aí prescrevendo ingenuamente tratamentos que onerassem o plano, corroendo a margem de lucro do empresário que, em nome do crescimento da empresa, impõe limites de gastos. E, assim, o plano disponível, na hora de usar, em nada se parece com o da publicidade.
O crescimento de algumas empresas do segmento saúde foi extraordinário, a ponto do dono de uma delas (que era médico) ter declarado sem nenhum pudor que atribuía o seu sucesso empresarial astronômico ao privilégio de contar com uma mão de obra qualificada e barata, que era a classe médica brasileira. Não se ouviu mais do que resmungos de alguns dos 450 mil tripudiados existentes no país e que aparentemente estavam tão ocupados com os cuidados de pessoas doentes que nem perceberam a extensão do ultraje. Quem paga por algum serviço sente-se, justificadamente, no direito de exigir contrapartida, e, então, o médico brasileiro se converteu inesperadamente em marisco, espremido entre o mar de exigências dos pacientes e a inflexibilidade do rochedo empresarial.
Como o pobre paciente não tem conhecimento dos meandros do processo, o médico, única ponta visível do sistema, passou a ser visto como um para-choques das mazelas da saúde, pública ou privada, e descobriu-se vulnerável diante de crescentes demandas judiciais.
Neste fogo cruzado de interesses escusos, ele tem tentado sobreviver com a dignidade e o respeito historicamente destinados aos médicos de verdade. E haja esforço para preservar a altivez nestes tempos de honorários baixos, condições de trabalho precárias, ministros desqualificados (o último a debandar – graças a Deus – foi capaz da desfaçatez de dizer que os médicos brasileiros precisam parar de fingir que trabalham), e pressão dos planos de saúde para que o médico seja também um gestor de gastos, com o objetivo de preservar seu empreguinho de salários degradantes. Para quem achava que pior não podia ficar, uma surpresa: podia. Se um doente processar o médico, ele se descobrirá absolutamente sozinho e seus pedidos de apoio dos contratantes serão ignorados.
Com este cenário de fogo amigo, tenho ensinado aos médicos jovens que, em uma demanda judicial, eles só encontrarão quem os defenda se tiverem priorizado integralmente o interesse do paciente, ou seja, o médico também tem que ser, o tempo todo, o advogado do cliente. E com uma fidelidade ideológica inabalável, como se vê em alguns ministros do Supremo.