Adivinhos e cartomantes sempre exerceram grande fascínio. Na história, imperadores e políticos recorreram aos oráculos em momentos decisivos. A literatura também se serviu desses arquétipos, como em Machado de Assis e Clarice Lispector. É comum que, ao final de um ano, pensemos no que nos aguarda, ainda mais após um ano tão difícil pelo qual passamos.
Minha mãe, dona Sandra, é cartomante. Dizem ser a mais solicitada da cidade porque ela sempre acerta. Cresci vendo filas e filas de pessoas angustiadas entrando e saindo de nossa casa à procura de conforto porque o presente lhes parecia insuportável. Mesmo que o futuro revelado nem sempre fosse melhor do que o agora. No entanto, bom ou ruim, imaginar o futuro é, no fim das contas, o que nos leva adiante.
Demorei para compreender que dona Sandra fazia uma das coisas mais bonitas e delicadas que já vi, pois, assim como um Ifá, o oráculo originário da cultura Yorubá, minha mãe orientava pessoas fragilizadas, perdidas em suas dores cotidianas. Apontava-lhes direções. Às vezes como profeta, às vezes como filósofa, às vezes como mãe.
Na vida adulta, tornei-me escritor e compreendi o quanto a vidência e a criação literária tinham, de certo modo, o mesmo princípio: construir futuros. Assim como nas cartas, a literatura pressente a realidade, antecipa-se a ela e intui verdades. Embora enxergue semelhanças entre literatura e cartomancia, há algo nesse jogo decifratório do futuro que está para além da racionalidade. A vidência de dona Sandra é algo que nos escapa à compreensão, pois, nessa vertigem visionária, ela nos apresenta uma outra experiência: a experiência do sagrado. Uma experiência misteriosa vedada ao mundo ocidental, tecnocrata e capitalista.
Numa perspectiva de matriz africana, o ano que chega será regido por Oxum, Oxalá e Iemanjá. Espero que possamos enxergar belezas no presente, para construir nossos futuros, seja pela vidência, seja pela literatura. O que as cartas dizem sobre o próximo ano? Ainda não sei, vou perguntar a dona Sandra. Bom 2021.