A semana começou com um petardo disparado naquela zona cinzenta que separa a política do crime: a colaboração premiada feita por um dos envolvidos confessos no assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), em março de 2018.
A delação foi feita, na Justiça, pelo ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, em troca de redução na pena por duplo homicídio (além da parlamentar, foi morto o motorista dela, Anderson Gomes).
Élcio admitiu ter sido o motorista do Cobalt usado pelos assassinos, todos milicianos, segundo ele. Entre os que o delator relata que participaram do complô que resultou na morte de Marielle e de Anderson estão dois outros ex-PMs, um ex-bombeiro e outros implicados em homicídios, conforme revelamos em coluna na segunda-feira (24).
No relato disponível, Élcio diz que o crime foi encomendado por um dos seus ex-colegas da PM e não menciona o motivo do assassinato, confirma apenas que a vereadora foi monitorada por oito meses, até o momento propício para a execução. Mas parte de sua colaboração está sob sigilo, então é bem possível que ele tenha relatado quem são os mandantes do crime (ou quem ele supõe que sejam). O que salta das revelações do miliciano, além do detalhamento do duplo homicídio, é a rotina de delitos praticados sistematicamente por policiais e ex-policiais no Rio de Janeiro. É uma aula de crime organizado.
Élcio é um compêndio ambulante do que um policial não deve fazer. Foi expulso da PM em 2015, por corrupção. Desde então alterna serviços como segurança particular (de pessoas e transporte de cargas) e extorsões praticadas na periferia carioca. Alguns dos "bicos" foram indicados pelo seu amigo há três décadas, compadre e também ex-PM Ronnie Lessa — que Élcio diz ser o atirador que matou Marielle.
Lessa, segundo o relato, tem uma sociedade com um ex-bombeiro para exploração da "gatonet" (internet pirata) em Rocha Miranda, subúrbio da zona norte do Rio. Ele também aceitava encomendas para cometer assassinatos, como o de Marielle. Parte do dinheiro ele enviava, em espécie, para ajudar Élcio, além de indicá-lo para serviços variados, inclusive de vigilância de alvos.
Conforme Élcio, com o dinheiro Lessa comprou uma Dodge Ram blindada, uma lancha, vendeu essa lancha e comprou outra maior e também planejava fazer uma casa de praia em Angra dos Reis (além da residência no Rio). Tudo fruto de crimes. Segundo Élcio, os dois ex-PMs tinham também um arsenal de armas, que incluía submetralhadoras e fuzis e não custam barato.
Élcio também fala dos métodos. Ele conta que além da habitual extorsão de comerciantes, os milicianos (inclusive ele) usam carros roubados para realizar as campanas (vigilâncias) dos alvos. É o caso do Cobalt utilizado para seguir Marielle até o local do assassinato.
"Carrinho ruim...carro de procedência roubada, conhecido como 'cabra'. Era clonado", resume Queiroz, no relato.
Em época de encomendas de crimes, esses milicianos usam celulares pré-pagos, descartáveis. E até desligam os aparelhos, no momento de cometer o delito. Utilizam também um aplicativo no telefone que apaga mensagens assim que são lidas.
Élcio diz que só soube que a mulher assassinada era uma vereadora minutos antes da emboscada. E que vomitou três vezes, de nervoso, após o crime ser cometido. Acredite, se quiser. Ao contrário dele, Lessa teria se mostrado metódico e frio. Entregou o Cobalt para um desmanche e picotou as placas do veículo, além de recolher os estojos dos projéteis disparados da metralhadora.
Élcio disse que rompeu com Lessa porque este mentiu ao dizer que não deixou rastros ao vigiar Marielle: teria feito pesquisas no celular a respeito da vereadora e seu endereço, o que possibilitou à Polícia Federal ligá-lo ao crime. Acredite, se puder...
Na realidade, Élcio quer se livrar de parte da pena pelo duplo homicídio. Deve ficar mais oito anos preso em regime fechado e, depois, ganhar proteção estatal. O desafio maior da PF é chegar aos mandantes da dupla execução.