Em 2011, deveria ter ocorrido o desfecho de um dos crimes mais comentados da história de São Gabriel, cidade gaúcha da Fronteira Oeste. Após horas de júri, o empresário Paulo Afonso Corrêa de Bem foi sentenciado a 16 anos de prisão por matar a noiva, Núbia Beatriz da Fontoura Farias, sua sócia numa academia. A mulher foi morta a tiros nos fundos da residência e todos os indícios incriminaram o noivo, que acabou condenado. Só faltava um detalhe: ninguém sabia onde estava o réu.
Paulo Afonso não era visto em São Gabriel desde o dia do crime, 29 de maio de 1993, quando ele deixou ensanguentado a casa onde os dois viviam, dizendo que Núbia estava ferida e que iria buscar ajuda. Então ele sumiu. Não foi configurado flagrante, nem foi decretada sua prisão preventiva. Ele viveu em Canoas por algum tempo, chegou a ser interrogado. Admitiu ter discutido com a noiva e alegou que seu revólver disparou por acidente. Após o interrogatório, o autor do disparo voltou a desaparecer. Testemunhas disseram que o casal vivia brigando e que Núbia era vítima de agressões. O júri demorou anos porque, até 2008, não era possível julgar um réu sem a presença dele.
Quando a lei mudou, Paulo Afonso não compareceu ao próprio julgamento e foi condenado sem estar presente. Poucos sabiam, mas ele se encontrava desde 1995 na França, para onde tinha fugido com ajuda de familiares. O condenado só retornou ao Brasil na semana passada, quase três décadas após o homicídio, para cumprir a pena. Foi preso em Luynes, na Provença francesa, em 2017 e desde então aguardava o final de um processo de extradição, graças a esforços de Interpol (Polícia Internacional), Polícia Federal, Itamaraty e Ministério Público do Rio Grande do Sul.
Mas como Paulo Afonso foi localizado? GZH conversou com a promotora de Justiça Lisiane Veríssimo, de São Gabriel, que deu dois passos decisivos para a punição do autor do homicídio. O primeiro foi acusá-lo pelo crime. Ela atuou no processo em que o réu foi condenado, em 2011. Depois, como o condenado continuava sumido, foi atrás de pistas do seu paradeiro.
— Em 2011 ainda, logo após a sentença, coloquei o nome do Paulo Afonso, que tem um sobrenome incomum, no Google. E acertei. Em meio a informações dispersas, encontrei uma oferta de currículo dele, em francês. Paulo Afonso oferecia serviços de segurança privada. Informava ainda que tinha participado da Legião Estrangeira (unidade de voluntários forasteiros que servem a serviço da França em diversos conflitos pelo mundo). No processo mesmo do homicídio eu fiz uma petição, atendida pela juíza do caso, que determinou que a Polícia Federal fosse informada.
Após comunicados da Justiça, a PF, representante da Interpol no Brasil, comunicou as autoridades francesas, que confirmaram: era mesmo Paulo Afonso. Ele inclusive tinha nacionalidade francesa, recebida do governo após lutar pela Legião Estrangeira no Chade e na República Centro-Africana. O nome dele foi incluído na Difusão Vermelha, com aviso internacional de que estava foragido. Só que, além de ter uma firma de segurança, ele tinha virado policial municipal e colaborava com os franceses em investigações contra terrorismo. Para dificultar ainda mais a situação, os seus defensores alegaram que ele não sabia que tinha sido condenado no Brasil e exigiam um novo julgamento por homicídio.
— Fiz nova manifestação no processo, provando que o Paulo Afonso tinha inclusive sido interrogado judicialmente sobre o homicídio. E como não saberia da condenação, se foi dada intensa publicidade e se foi procurado para ir ao tribunal? — questiona Lisiane.
Paulo Afonso chegou a ficar preso pelos franceses, entre 2018 e 2020, por alegação brasileira de que poderia fugir. Mas então conseguiu liberdade condicional e continuou trabalhando como segurança, tendo de se apresentar periodicamente à Justiça. Nesses 11 anos desde o julgamento, inúmeros ofícios e cartas rogatórias foram trocados entre a Justiça brasileira e a francesa, com ajuda do Itamaraty. Para cada documento era necessária tradução.
Lisiane e o Judiciário conseguiram convencer os franceses de que não seria realizado novo julgamento, pois foram observadas todas as garantias legais no processo. Em paralelo, a PF acionou a Interpol para que monitorasse os passos do foragido. Ele residia em Aix-en-Provence, no sul da França, na região chamada Bouches-du-Rhone.
Em setembro de 2021 a extradição de Paulo Afonso foi concedida pela Justiça francesa. Ele recorreu, mas a decisão foi confirmada e executada esta semana, a pedido da PF, que o escoltou de volta ao Brasil. Ele chegou ao Rio Grande do Sul no dia 3 e está preso no Presídio Estadual de São Gabriel.