Criaram um problema de difícil solução os desembargadores que permitiram julgamento longe do local dos acontecimentos a um dos réus pelo incêndio que matou 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria, em janeiro de 2013. O Tribunal de Justiça autorizou um dos quatro acusados — e apenas um, Elisandro Spohr, o Kiko — a ser submetido a júri em Porto Alegre e não na cidade onde houve a tragédia. Os outros réus (o músico Marcelo de Jesus dos Santos e o ajudante da banda Luciano Bonilha Leão, além do ex-dono da boate, Mauro Hoffmann) serão julgados em Santa Maria.
O mérito pela proeza é do advogado de Kiko, Jader Marques. Ele convenceu os desembargadores de que seu cliente será linchado moralmente se for julgado na cidade traumatizada pelas 242 mortes. Mesmo sem que nenhum dos réus tenha desejado ou, nas palavras dos advogados, sequer imaginado o risco a que teriam submetido os frequentadores da boate. A verdade é que, longe das atingidos emocionalmente pelas perdas, a chance de clemência é maior.
O incêndio, é bom recordar, foi causado por um artefato luminoso lançado pelos músicos no teto da danceteria. Já os proprietários da Kiss foram responsabilizados por problemas de segurança, como inexistência de saídas de emergência e barras que impediram a fuga dos frequentadores.
E por tudo isso os réus irão responder. Mas por que alguns enfrentarão o júri na cidade onde aconteceu a tragédia e outro, bem longe? Os crimes atribuídos a eles são os mesmos, ocorridos no mesmo dia e local. A verdade é que a instituição do júri prevê que acusados de delitos contra a vida sejam julgados na própria comunidade onde aconteceram os fatos. Há centenas de anos é assim: aquele que pecou, em tese, deve pedir justiça (ou clemência?) aos seus conterrâneos.
O Ministério Público contesta a decisão, com razão. Não há qualquer sentido em mandar um dos réus para julgamento longe da sua comunidade. A menos que ele corresse risco de vida, o que não parece ser o caso. Tribunais contam com detectores de metal e revistam seus frequentadores. O júri de todos, portanto, deveria ser no mesmo lugar. Tanto que um dos réus, Marcelo dos Santos, exige o mesmo tratamento dado a Kiko: ser julgado em Porto Alegre, longe do clamor popular. Tudo isso traz embutido o risco de nova demora e mais sofrimento. Tanto para os familiares dos mortos, que aguardam justiça há mais de meia década, como para os próprios acusados, cuja existência parou naquele fatídico janeiro de sete anos atrás.