Por Flávio Tavares, jornalista e escritor
Todas as religiões e filosofias, por mais díspares que sejam, convergem em defesa da vida e classificam o ato de matar como o crime dos crimes. O quinto Mandamento é taxativo: "Não matarás". Mesmo assim, mata-se cada vez mais, por diferentes pretextos ou formas. Por barbárie pessoal ou por "heroísmo", nas guerras.
Hoje, na extravagância da sociedade de consumo, matar não se limita ao horror dos assaltos dos bandidos ou às rixas pessoais. Quase tudo nos mata aos poucos, acelerando o dia final – os alimentos artificiais ou envenenados (lembram-se do leite?), ou o ar, terras e águas poluídas. O horror de Brumadinho é só o exemplo brutal da irresponsabilidade humana.
Neste quadro, o ministro Sergio Moro apresentou o projeto de lei de combate ao crime e à corrupção, concretizando a promessa com que Jair Bolsonaro seduziu os eleitores e se elegeu presidente. O projeto de Moro reúne sua experiência de juiz criminal, mas não toca na grotesca vulgaridade e ignorância que geram o crime. Pune as consequências sem ir às origens profundas do crime, algo a ser encarado por vários setores do governo e por todos nós.
É preciso endurecer as leis, sim, mas a violência e o crime não se extirpam somente com as penas e indo só às consequências. Hoje, quase tudo induz à violência. Daí ao assassinato é um pulo. Digo sempre que até o que chamam de "música" é violento. As crianças se transformam em robôs nos botões do celular ou no controle remoto da TV e, assim, se educam pelas vulgaridades, não no lar paterno ou na escola.
O combate à violência não pode se limitar à polícia e aos tribunais. Abarca várias áreas do governo e toda a sociedade, e isto o correto projeto de Moro não viu.
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Juristas e pensadores advertem, ainda, para uma perigosa falha no projeto: ali se reduz a pena ou se absolve a quem mata, se o ato de matar "decorre de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".
Não temos pena de morte e nenhum juiz pode decretá-la baseado sequer na perversidade que apareça nas razões do processo. Mas, pelo projeto, um policial (e quem se sinta ameaçado) pode matar por "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Se nem a racionalidade do processo judicial pode aplicar a pena de morte, por que a surpresa, medo ou emoção podem matar?
O ministro Moro diz que o projeto "não dá licença para matar". Mas ao apresentá-lo à imprensa, não explicou o significado concreto do "escusável medo ou emoção".
De fato, calou-se sobre o "não matarás" do quinto Mandamento.