O desdém é tanto e tão profundo, que deveríamos nos envergonhar daquela madrugada de 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria, e não apenas recordá-la ou, até, fustigá-la. Com ela, a impunidade se implantou e tapou o essencial:
– Afinal, quem Kiss o horror?
Seis anos depois, tudo é ainda mais angustiante. Cada minuto, hora ou dia impune nos leva ao esquecimento. A morte de 242 jovens foi relegada à condição de tola rixa entre bêbados, em que a Justiça apenas faz que atua, mas, de fato, nada faz ao dar a entender que faz e que tudo foi feito, pois os ritos foram cumpridos num incidente em que crime algum aparece…
A impunidade é tão mesquinha e absoluta, que, a seguir assim, os únicos culpados serão os 242 mortos e os 680 feridos que lá escolheram estar. Entre os sobreviventes, há uma moça escalpelada pelo fogo e centenas sofrem problemas respiratórios, além do trauma de recordar.
A minuciosa investigação policial atenuou-se nas mãos do Ministério Público. Ao protestarem pedindo Justiça, os familiares das vítimas acabaram processados (por "calúnia") pelos próprios promotores de Justiça, que representam a sociedade…
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O absurdo fincou raízes. O que escrevi nas horas seguintes ao crime (e publicado em 28 de janeiro de 2013) permanece, não mudou. Leiam:
"Consumada a tragédia, além do pranto e da solidariedade, resta agora o caminho mais árduo: encontrar os assassinos diretos e indiretos. Sim, pois os culpados transformam-se em assassinos, autores de um homicídio coletivo.
Não se equivocaram enchendo os salões além da lotação máxima. Sabiam que não havia saídas e nunca resolveram o problema. Programaram a atração de um fogaréu sabendo que fogo se propaga. Tudo foi feito como se fosse premeditado.
Armaram o cenário da morte, mesmo pensando em divertir. Os fiscais municipais 'deixaram por isto'. A burocracia só cuida dos papéis e, nos papéis, tudo se contorna com propina. 'As licenças estavam em ordem', dirá a prefeitura ou quem de direito. E daí? Onde estava a responsabilidade empresarial? Em Santa Maria, tudo se juntou – sanha de lucro fácil, desídia irresponsável dos donos da boate, além da fiscalização municipal carcomida pelo desleixo ou pelo suborno.
A tragédia exige pensar e indagar sobre o hedonismo da sociedade de consumo, que transforma tudo em mercadoria de venda fácil. Tudo, até a vida de mais de duas centenas de jovens que buscavam relaxar e divertir-se. Esta tragédia não é apenas brutal, é revoltante".
Hoje, seguimos em 2013.