Como a pandemia criou uma situação de emergência para os profissionais da cultura, privando-os de sua fonte de renda (espetáculos, shows, etc.), é um alento quando uma iniciativa em meio a tudo isso traz uma nota positiva. O canal História do Teatro, que a atriz, professora e pesquisadora Juliana Wolkmer criou no YouTube, conta episódios fundamentais – e às vezes inusitados – dos palcos gaúchos desde priscas eras.
No primeiro vídeo, Juliana lembra o primeiro teatro de Porto Alegre, a Casa da Comédia, construída em 1794. Bem diferente de antigas e elegantes salas de espetáculo que ainda temos no Estado, como o Theatro Sete de Abril, em Pelotas, e o São Pedro, em Porto Alegre, a finada Casa da Comédia era um precário barracão amarelo onde o público, majoritariamente masculino, assistia às atrações em clima, digamos, informal.
A atriz Maria Benedita de Queirós Montenegro, pioneira dos palcos na Capital, no final do século 18, é o tema do segundo vídeo. Não perca a parte em que Juliana faz uma leitura comentada do contrato de trabalho de Dona Maria, como era conhecida, com o empresário Pedro Pereira Bragança. Em uma das cláusulas absurdas, a atriz deveria "sujeitar-se com tudo à boa ou má direção do ensaiador e vontade do empresário".
Esse olhar contemporâneo e crítico para a história dos palcos gaúchos é uma característica do canal. Juliana se dirige ao público em geral, não apenas a iniciados, empregando uma linguagem descomplicada e sem academicismos, por mais que ela mesma seja uma acadêmica – é doutoranda em Artes Cênicas no Departamento de Arte Dramática da UFRGS e tem formação dupla em Teatro e História.
O mais importante desse projeto é que ele recupera o gosto por um tema com o qual nós, amantes do teatro, da dança e do circo, temos sido descuidados ao longo do tempo. Pesquisamos menos do que deveríamos sobre a história dos nossos palcos. A bibliografia é relativamente reduzida, dada a importância do tema, e tem evoluído de maneira lenta. Por que isso ocorre?
Apenas especulo. Nas últimas décadas, a história tem sido problematizada por ter sido escrita, majoritariamente, de um ponto de vista masculino, branco, europeizado. Hoje, não é mais viável fazer história daquele jeito, e o tamanho do desafio de escrever outra narrativa, plural e inclusiva, pode ter paralisado muita gente capacitada. Será que esse é o motivo? Não sei. Sei que é preciso encarar essa empreitada.
Leia, após o vídeo abaixo, entrevista com a criadora do canal de YouTube História do Teatro.
Juliana Wolkmer: "Precisamos disseminar o conhecimento da história do nosso teatro"
Como você avalia a quantidade e a qualidade da bibliografia que temos sobre a história do teatro no RS? Como sente isso, ao pesquisar sobre o assunto para o canal?
A bibliografia sobre a história do teatro no RS é muito limitada, principalmente, se pensarmos nos primórdios dessa história e no século 19, período cujo registro principal é a obra Palco, Salão e Picadeiro, do Athos Damasceno, que fez um importante e detalhado levantamento de fontes, principalmente de jornais e revistas da época. Temos também O Teatro no Rio Grande do Sul, livro do Lothar Hessel, bastante sucinto. A partir da segunda metade do século 20, existem mais registros da nossa história, como Um Teatro Fora do Eixo, do Fernando Peixoto, os livros sobre o Teatro de Equipe e o Teatro de Arena do Rafael Guimaraens, Os Cacos do Teatro – Porto Alegre anos 70, da Suzana Kilpp, Atuadores da Paixão, da Sandra Alencar, entre outros. Existem registros, mas dispersos e pontuais. Resumindo: temos muita história para registrar!
Por que a bibliografia sobre o assunto é limitada?
Não posso afirmar com precisão o motivo pelo qual temos poucos trabalhos aprofundados sobre a história do nosso teatro. Muitas vezes, parece que a história é algo apartado do nosso cotidiano e da nossa realidade, e não é! Quando passamos por uma rua de Porto Alegre, por exemplo, e conhecemos um pouco da sua história, a nossa relação com essa rua muda, a nossa relação com a cidade muda.
Acredito que o conhecimento da história do nosso teatro contribui para a valorização, não apenas do nosso passado, mas da arte que se faz no presente. Porto Alegre é uma cidade com forte tradição teatral, temos muitos artistas e grupos reconhecidos e qualificados, e isso não é obra do acaso, é fruto da luta e do trabalho de muitos artistas que no passado consolidaram a cena teatral da cidade, e assim acontece em outras cidades gaúchas.
Precisamos disseminar o conhecimento da história do nosso teatro, de forma responsável e qualificada, pois ela é digna de muito orgulho. Além disso, através da história do teatro gaúcho, podemos vislumbrar a história do RS e do Brasil em diferentes períodos, pois o teatro é reflexo da sociedade na qual está inserido.
Como você começou a se interessar pela história do teatro?
Comecei a me interessar pela história do teatro gaúcho em 2007, quando escrevi o meu TCC do curso de História sobre o Teatro em Revista, uma publicação que o Teatro de Arena de Porto Alegre lançou no ano de 1968. Desde então, percebo a carência de registros da nossa história. No mestrado, pesquisei sobre os primeiros anos de existência do DAD (Departamento de Arte Dramática) antes CAD (Curso de Arte Dramática/ Centro de Arte Dramática) e, atualmente, pesquiso a trajetória docente da Maria Helena Lopes, professora e diretora de teatro gaúcha, que influenciou gerações de artistas com o seu trabalho peculiar.
Em 2019, ao lado da Fernanda Stürmer, também atriz e historiadora, organizei a primeira edição do Seminário de História do Teatro Gaúcho, na tentativa de reunir e aproximar pessoas interessadas no assunto. O evento, que aconteceu no Teatro de Arena, foi muito interessante e contou com mais de 20 depoimentos de pessoas que fizeram a história do teatro na Porto Alegre das décadas de 1960 e 1970. A proposta é que o Seminário seja um evento anual, justamente para agregar pessoas interessadas, estimular grupos de pesquisa e impulsionar outros projetos que possam colaborar para a preservação da memória do teatro gaúcho.
Costumo trabalhar com história oral nas minhas pesquisas, pois muitos personagens incríveis da história do nosso teatro mais recente estão por ai, cheios de histórias para contar.
Quais são os próximos planos para o canal?
Tenho recebido muitos retornos positivos sobre o canal, o que me deixa muito feliz e estimulada para continuar o trabalho. A ideia é seguir com a primeira série de vídeos, dedicada à história do teatro na Porto Alegre do século 19, e, posteriormente, lançar vídeos que contemplem a história mais recente do nosso teatro, assim como grupos e artistas que marcaram época. Pretendo manter a proposta de vídeos curtos, didáticos e com linguagem acessível, porque acredito que o canal é um estímulo inicial para que as pessoas possam discutir, refletir e tirar as suas próprias conclusões sobre o nosso passado teatral.