Telefonemas cancelando shows confirmados até o fim do ano e noites de insônia são alguns dos elementos que afligem a classe artística em tempos de pandemia. Diante da ausência de iniciativas do poder público para auxiliar o setor — diferentemente da realidade vista em outros países —, músicos, produtores, técnicos, atores e outros profissionais da área cultural precisaram mudar de rumo. As contas seguem chegando. O dinheiro, não.
— Esse tipo de solução que criei é paliativa, por um problema social mesmo, as contas estão aí e não vejo atitude do governo como um todo, nem políticas públicas resolutivas — diz Alice Castiel, que trocou a atividade de produtora cultural, temporariamente, pela produção de massas (veja mais abaixo).
O músico e ator Dudu Xavier, que precisou largou os palcos para fazer entregas como motoboy, também lamenta a falta de ação:
— É uma pena que estejamos passando por tudo isso. Só queria que olhassem com menos politicagem e mais objetividade para a nossa classe.
Ação
Ainda em velocidade reduzida, as políticas públicas não têm chegado a quem mais precisa. Conforme antecipado pela colunista Rosane de Oliveira, a Secretaria da Cultura deve lançar, ainda nesta semana, um edital para a produção de projetos culturais em ambiente digital. Serão contempladas 1.940 iniciativas, com o valor de R$ 1,5 mil cada. Ao todo, o investimento será de R$ 2,9 milhões, provenientes do Fundo de Apoio à Cultura (FAC). A proposta é ajudar a amortizar as contas, minimamente, da classe.
Em esfera municipal, foram criadas campanhas solidárias para a arrecadação de alimentos. A partir desta quarta-feira (27), por exemplo, a prefeitura de Porto Alegre, através do Centro Municipal de Dança da Secretaria Municipal da Cultura, realiza a entrega de doações adquiridas para artistas e técnicos que estão vivendo uma situação de extrema dificuldade financeira. Os beneficiados devem estar ligados à Associação Gaúcha de Dança (Asgadan), ao Espaço N e ao Colegiado da Dança RS.
Abaixo, conheça histórias de artistas que precisaram mudar de rumo, não como uma reinvenção de vida, mas por questão de sobrevivência.
Distração virou coisa séria
A produtora cultural Alice Castiel Ruas, 30 anos, e o músico Isaias Luz, 38, encontraram na música um sentido para suas vidas. Na atividade há mais de 10 anos, Alice é responsável pelo agenciamento de várias bandas da Capital, entre elas a Trabalhos Espaciais Manuais e B.art. Estava se preparando para os shows do edital do projeto Natura Musical quando tudo parou.
— Lembro de um dia, logo depois que começou o isolamento social, em que o telefone não parava de tocar, um cancelamento atrás do outro. A nossa vida era levada com os eventos. Eu até tinha projetos maiores, que davam garantias lá na frente, mas tudo parou — diz Alice.
No caso de seu namorado, Isaias, a mesma coisa. Além de ter uma banda chamada Pituna, focada na música brasileira, participava de rodas de samba e se desdobrava no grupo de músicas infantis Mu. A agenda do primeiro semestre – que incluía festivais em outras cidades do Estado – foi toda adiada.
Vivendo em apartamento próprio, Alice e Isaias procuraram algo para tirá-los da inércia. Foi então que o gosto pela cozinha de ambos fez aflorar a ideia de trabalharem novamente em uma máquina de massas que estava encostada. O que era distração se tornou negócio: com divulgação simples no Instagram, começaram a produzir ravióli, talharins e tortéis e vender para conhecidos.
— No fim, esse dinheiro mal entra e já sai, é pra cobrir o emergencial mesmo. Pegamos o auxílio do governo, mas não resolveu nada. Tem sido pra pagar o mercado, a internet… Bem paliativo mesmo — conta Alice.
O negócio foi crescendo, e agora o casal tem uma rotina bem estabelecida: segundas e quintas passam o dia na cozinha, enquanto usam as terças e sextas para realizar as entregas. Algumas vezes, precisaram atrasar pedidos para não extrapolar no tempo que dedicam à iniciativa. Mesmo com os cancelamentos, Isaias segue produzindo músicas em casa e Alice vai buscando novos projetos – alguns deles viraram eventos virtuais, com o boom das lives nas redes sociais. Ela acredita que a arte tem a função de criar esperança em seus ambientes, e é isso que os move:
— A arte sempre sobreviveu e é meio que uma boia para a gente. Teve um momento que eu pensei: “Chega, vamos abrir restaurante, não quero mais saber”. É impossível, porque a arte é o que nos tira do chão, nos deixa felizes. É nisso que a gente se agarra.
Cultura pelo WhatsApp
O teatro como ferramenta de formação e evolução social é a premissa da carreira do professor e ator João Lima, 43 anos. Com mais de 25 anos de envolvimento com as artes cênicas, ele desenvolvia oficinas para escolas e empresas, sempre focado nas crianças, e fazia apresentação de eventos, de feiras do livro a aniversários.
Com o período de isolamento social, Lima começou a ver a contas chegarem com a onda de cancelamentos.
— Foram duas noites de insônia em casa, pensando principalmente em como fazer a arte chegar na casa das pessoas, enquanto os boletos não paravam de aparecer. Não temos amparo de ninguém — aponta Lima, que disse estar com aluguéis e contas de luz atrasadas.
Foi em uma pausa para o café, às 3h, que veio a ideia de um dos dois projetos que está desenvolvendo na quarentena. No Café com Poesia, a pessoa compra um pacote de poesias diárias de Lima, que faz a leitura e interpretação dos versos de grandes nomes da literatura, como Mario Quintana, Pablo Neruda e Fernando Pessoa. Desde que fez a publicação nas redes sociais, recebeu vários pedidos – muita gente tem solicitado que o áudio com a poesia seja entregue a um terceiro.
— No fim, todos buscam amenizar um pouco a dor desse momento, ouvindo uma sonoridade diferente com as palavras. As pessoas têm a necessidade de ouvir alguém do outro lado — acredita Lima.
O segundo projeto, que deve surgir nas próximas semanas, é o Biblioteca Viva, em que ele pretende oferecer uma série de contos ao contratante. Depois da escolha, fará a leitura por vídeo, brincando com sons, entonações e ritmos. Estuda ainda uma terceira ideia para o Dia dos Namorados.
Com seus projetos em aceleração, Lima destaca a importância do isolamento como ferramenta para conter o coronavírus:
— Não adianta, a vida vem em primeiro lugar. A gente precisa pensar no coletiva e o nosso único remédio é cuidar de si e ficar em casa. Vamos fazendo o que dá, o que importa é ver todo mundo bem.
Nova função
Crescer em um ambiente musical, por incentivo do pai, fez com que Elisabeth dos Santos Abreu, 30 anos, perdesse um pouco o chão na quarentena. Baterista do Fofa Nobre e Grupo Acord’s, precisou parar ensaios e encarar o desaparecimento da agenda de shows previstos para maio e junho.
— Eu me sustentava com a música, mas sempre continuei estudando. Fomos os primeiros a parar e seremos os últimos a voltar — lamenta Elisabeth.
Desde o início do isolamento, ela começou a trabalhar como social media, fotógrafa e até no atendimento ao cliente de uma empresa do ramo alimentício liderada pela irmã. Viu o quadro de funcionários ser reduzido e ajudou na criação de uma nova linha criativa da companhia, que já está realizando entrega de refeições via aplicativos. Antes, a empresa só produzia alimentos para refeitórios de terceiros – negócio que também teve a demanda reduzida.
— Fui até privilegiada, por ter conseguido esse trabalho, sei que tem gente em situação pior. Mas foi triste largar totalmente algo que gostava. Cresci indo aos shows do meu pai, dormindo debaixo do palco — recorda Elisabeth, que é filha de um dos integrantes da banda Tchê.
Para ela, tem sido um momento desafiador, já que teve de voltar ao horário comercial e abandonar as apresentações noturnas. A esperança é de que tudo passe logo.
— Meu sentimento é de insegurança, não sei o que vai ser amanhã. Parecia tudo indo bem, a música é que me mantém bem, e agora a gente não sabe para onde está indo. Estamos apavorados, essa é a verdade.
Uma nova conta para pagar as outras
Quando abandonou seu trabalho em uma multinacional, em 2015, para se dedicar somente às artes cênicas, o ator e músico Dudu Xavier, 40 anos, estava com consciência tranquila. Guitarrista da banda Rock Santo Forte há mais de 10 anos, ele também viu no teatro uma possibilidade de formar público. Por isso, após montar a Companhia Arte Tríad, passou a ensaiar espetáculos infantis, engatando com apresentações em escolas de Porto Alegre e Região Metropolitana.
Com o início do isolamento social, os dois projetos foram parando aos poucos. Até os editais de ocupação foram paralisados. Por isso, a renda familiar dedicada à educação e criação das filhas de 17 e sete anos foi acabando. Foi no começo de abril, após semanas anestesiado, que o desespero começou a bater.
— As ligações cancelando as mais de 18 apresentações que eu tinha marcadas foram o limite — lembra Dudu.
Com a carteira habilitação feita tempos atrás, mas até aqui sem utilização, ele precisou fazer outra conta: comprou uma motocicleta e passou a divulgar nas redes sociais que estava fazendo qualquer tipo de telentrega. De documentos a comida. De pouco em pouco, consegue ir amenizando as contas.
— Na semana passada, consegui ir à escola e renegociar as parcelas dos livros das minhas filhas. Uma semana paga água, na outra, a luz… E assim vai — conta Dudu.
Ele conta que também conseguiu um contrato temporário com uma empresa terceirizada de entregas, atrelada a um aplicativo do ramo, com quatro horas diárias de dedicação exclusiva. Por fora, vai divulgando seu trabalho nas redes sociais, colecionando uma média de 12 entregas por dia.
Mas nem sempre tem sido assim. Na última sexta-feira (22), quando a chuva caía forte em Porto Alegre, foram somente três atendimentos.
— Fico meio apavorado, porque fico aqui esperando chamadas. É uma sensação de impotência diante de tudo, porque não tenho uma visão do futuro. Eu abri mão do trabalho formal para viver da arte, porque acredito que ela tenha um papel muito além do que as pessoas pensam — reforça Dudu.
Por estar sempre ligado às políticas públicas e editais voltados à cultura, Dudu acredita que a pandemia se tornou o motivo que faltava para eliminar a preocupação do poder público com a área.
— A arte sempre entrou em quarto, quinto lugar na lista de prioridades. A impressão é que a desculpa da vez agora vai ser a pandemia. Era a gota d’água.
Sempre pronta para o perrengue
O negócio da família, em Riozinho, tornou-se uma das formas de sustento da diretora de arte Sheila Marafon, 31, na Capital. Com trabalhos em filmes como Raia 4, de Emiliano Cunha, e O Último Jogo, de Roberto Studart, ela vinha se dedicando a curtas-metragens e séries de TV, mas a agenda parou com o cancelamento de produções, até mesmo no mercado publicitário, que também vinha lhe abrindo possibilidades profissionais.
No interior gaúcho, seus pais se dedicam à apicultura e à produção de mel. Mesmo acostumada a ter reservas financeiras, por trabalhar em um ramo de trabalho incerto, Sheila viu tudo chegar a uma escala preocupante com a pandemia. Começou a vender mel para amigos, divulgando em suas redes sociais. Quando os pais vêm a Porto Alegre, trazem alguns potes no carro. Outros dias, ela faz um bate e volta a Riozinho. Mas nada de "reinvenção", frisa Sheila.
— Odeio essa frase, de que crise é pra se reinventar. A gente tem juntado os cacos e lutado pra sobreviver da arte no meio desse país. A gente tem que comer, tem que sobreviver mesmo, e o mel foi a primeira possibilidade que surgiu — conta Sheila.
Além da venda dos potes de mel puro, sem nenhum processo industrial, a diretora de arte tem apostado na confecção de caderninhos e pequenos artigos de papelaria. Esse trabalho já proporcionava nas horas vagas um ganho extra, mas tomou importância maior agora.
— Não adianta, sempre estou preparada para o perrengue. Então, juntando tudo… o mel, o caderninho, vai dando para pagar as contas, mas nessa situação fui diminuindo tudo o que pude — reforça Sheila.
No fim das contas, ela acredita que suas novas ocupações durante a quarentena têm sido uma forma de manter a chama da arte acesa em sua vida.
— O mel e os caderninhos fazem crescer sentimentos bons, trazem uma felicidade inexplicável. Vejo que vai um pouco de mim em cada coisa que faço. Tenho me agarrado nisso pra pagar as contas e pra encarar tudo com o mínimo de normalidade possível — finaliza.