Conta a tradição judaica que o rabino Tarfon era conhecido por três características: a grande erudição, a sincera humildade e o profundo respeito à mãe. Certa vez, a mãe deixou cair uma de suas sandálias, mas a lei de observância do Shabat proibia o rabino de pegá-la, então ele se agachou e colocou as mãos sob os pés dela para que pudesse caminhar sobre elas até entrar em casa. Os outros sábios, exigentes, jamais se deixavam impressionar com esse tipo de coisa: diziam que ele não estava cumprindo nem a metade do mandamento de honrar pai e mãe.
Elie Wiesel (1928-2016), Prêmio Nobel da Paz que sobreviveu aos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald, escreveu um sensível texto sobre o rabino Tarfon e poupou aos leitores modernos o trabalho de percorrer as herméticas páginas do Talmude em busca das fontes originais. Recuperando anedotas rabínicas (o judaísmo tem essas coisas), Wiesel se intrigou com o fato de Tarfon ser sempre o primeiro dos sábios a falar. Onde estava sua propalada humildade? Por que não deixava os demais responderem antes? O próprio Wiesel se encarregou de explicar: era costume da época que o primeiro a falar fosse o mais jovem, para que as opiniões dos mestres não o influenciassem. Ao se pronunciar antes dos demais, Tarfon se considerava o menos instruído.
Sua modéstia soa exemplar nos tempos atuais. Diz-se que ele conseguia acatar a ideia do interlocutor no calor de um debate, que às vezes admitia aos alunos não saber as respostas e que não guardava rancor. Mas, como qualquer ser humano, tinha defeitos. Para Wiesel, Tarfon não era o que chamamos hoje de ecumênico – uma maneira elegante que o Nobel da Paz encontrou para dizer que o rabino era severo com os cristãos-novos, os judeus conversos.
É nas qualidades desse grande sábio que penso quando reflito sobre o papel dos intelectuais hoje. Por intelectuais me refiro a professores, estudantes, jornalistas e simpatizantes que se importam com a cultura e defendem sua relevância para o país e para o mundo. Em meio a ataques injustificados ao setor, que têm turvado até mesmo o entendimento de moderados, o intelectual precisa cada vez mais se dirigir ao público amplo, não especialista.
O discurso crítico sobre a produção cultural se sofisticou, de modo que parece a muitos um domínio restrito de um seleto grupo. Mas é perfeitamente possível expressar ideias complexas de forma compreensível. Além dos suplementos especializados na imprensa, a cultura é assunto da população nas redes sociais, nos podcasts, nas conversas de elevador e de bar. Nada disso substitui o conhecimento adquirido nas aulas, nos simpósios, nas bibliotecas, mas é uma linguagem que é preciso aprender para sair da torre de marfim.
Assim como o rabino Tarfon, os intelectuais devem almejar sabedoria e humildade, mas diferentemente dele, precisam ser ecumênicos, dialogar sem preconceito. Muitos já fazem isso exemplarmente, mas outros ainda podem se unir a esse esforço. Frequentemente se questiona sobre como sensibilizar a população para a importância da cultura. Não existe a resposta perfeita, mas sábio é aquele que entende que nunca se termina de aprender. Se você já mudou de ideia conversando com pessoas que pensam diferente, Tarfon ficaria orgulhoso.
Por falar nele, Elie Wiesel conclui seu texto com um dos aforismos inesquecíveis do rabino: "Ninguém está te pedindo para completar a tarefa, mas tens de iniciá-la".