A história é uma construção – mesmo sendo “construída” com base em fatos reais. Para ser mais claro, e usar a palavra que agora virou palavrão: a história é uma narrativa – sempre foi e sempre será. Como tal, ela precisa, necessariamente, ser editada. E quem narra, quem conta, quem escreve (ou seja, quem edita), escolhe o que entra e o que fica de fora; o que vai virar manchete e o que não será mais que nota de pé de página. Com o passar do tempo, a história vai se cristalizando por meio da tradição – e toda a tradição é inventada. Não no sentido de que privilegie algo que não aconteceu, mas no sentido de que determinados acontecimentos são consolidados pela “história oficial” em detrimento a outros (ou a outras versões desses mesmos fatos), que assim acabam ignorados, esquecidos e então suprimidos da dita História com maiúscula.
Raras tradições foram mais inventadas do que o Sete de Setembro e o Grito do Ipiranga. Claro que Dom Pedro gritou às margens plácidas do Ipiranga – mas se o sol de fato brilhou com raios fúlgidos no céu da pátria naquele instante, não foram mais de trinta as pessoas que o viram (e ouviram). A independência do Brasil foi um processo lento e sinuoso, que teve início com a transmigração da Família Real portuguesa para o Brasil em 1808, passou pelo Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822, e só se concretizou com a assinatura do Tratado de Paz e Aliança, em agosto de 1825, quando o Brasil pagou (uma fortuna) para que Portugal enfim reconhecesse a separação.
A questão é que, até 1822, a “construção” da história se dava toda no Rio de Janeiro. E São Paulo não estava gostando nem um pouco de ficar fora da “narrativa”. Assim, servindo-se daquele grito quase aleatório, proferido no meio do nada e escutado por quase ninguém – mas em São Paulo –, os paulistas construíram tijolo por tijolo, num desenho lógico, a tradição do Sete de Setembro, referendada depois pela pintura magistral de Pedro Américo, “O brado do Ipiranga”, feita 66 anos após os eventos que representou de forma mais real que a própria realidade – quase um deep fake.
Assim, e por isso, a gente continua fazendo de conta que não sabe que a independência foi articulação do Centrão: uma artimanha da bancada ruralista do Senado para manter intocada a escravidão, fazendo o Brasil mudar só para continuar igual, como tantas vezes. Escrevi e apresento a série B de Brasil, exibida pelo History Channel a partir da próxima quarta-feira, às 23 horas, com reprises aos sábados às 17h30 e domingos, às 20. Claro que também é uma construção – mas garanto que está mais longe da lenda e mais perto dos fatos. Sem deixar de ser divertida. É sério.