Se me fosse dado escolher meu torrão favorito nessa Terra, certamente não haveria de ser o bairro onde nasci, cresci e agora, faz já incerto tempo, vivo outra vez. Nem Canela, na Serra, onde fui gerado, passei 20 férias e agora ficou impossível de ir por causa do engarrafamento no gramado do vizinho, que nunca achei melhor do que minha velha rua de grama que virou de asfalto. E nem mesmo a praia antes virginal e hoje prostituída, no litoral de Santa Catarina, onde, com a ajuda de plantas de poder, percebi que a realidade é puro realismo mágico.
Não, não. Meu torrão favorito no planeta azul fica entre as alvas montanhas e as verdes florestas das White Mountains, no topo do ensombrado e purpúreo Vale do Rio Hudson, na parte alta do Estado de Nova York, e se chama Woodstock. Infelizmente, todo mundo já ouviu falar de Woodstock, por causa do maldito festival. Mas não era para ser assim, e durante dois séculos não foi. Era para ser só um arrabalde, como o Moinhos, antes da gentrificação. Era para ser só um refúgio serrano, como Canela, antes do turismo massificado. Era para ser quase virginal, como o santo litoral de Santa, antes dos hunos.
Como tudo no Novo Mundo, a região de Woodstock pertencia aos indígenas. E foi para contar as histórias deles que Woodstock viu nascer a literatura norte-americana, com Washington Irving e James Fenimore Cooper. Irving mergulhou também no folclore dos pioneiros holandeses e resgatou a Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e o sono pesado de Rip Van Winkle, enquanto Cooper contou a saga do Último dos Moicanos. Tudo ali.
Mas o primeiro grupo de artistas a se fixar na região foram os pintores da chamada Hudson River School que, influenciados por um certo bucolismo pastoral, buscaram a paz e a luz (não nessa ordem) naquelas montanhas. O engraçado é que eles saíram do bairro boêmio Greenwich Village, em Nova York, por acharem-no “barulhento demais” – em 1825. Os mais famosos pintores do grupo foram os magistrais Thomas Cole e Frederick Church, meu favorito.
Mas a guinada se deu mesmo em 1902, quando Ralph Radcliffe e Jane Byrd, ligados ao Arts & Craft Movement, fundaram a comunidade “utópica” Byrdcliffe, dedicada às artes e ao amor livre, lá em Woodstock. Quando a comunidade sofreu o primeiro cisma – sabe-se lá por que... –, um de seus membros originais, o escritor Hervey White, criou, em 1906, uma comuna ainda mais radical, a Maverick Arts Colony. Ele transformou uma antiga igreja em teatro e estúdio – e lá surgiu, em 1915, o Festival de Música de Woodstock. Em 1931, por causa de confusões, bebedeiras, excessos e nudismo, o festival foi cancelado. Para sempre.
Ou seja, todo mundo que chegou em Woodstock depois de 1931, chegou atrasado. Ainda bem que não aconteceu mais nada digno de nota lá desde então.