Jack Kerouac mudou minha vida de todas as formas concebíveis. Já escrevi essa frase antes, referindo-me a Bob Dylan. Mas a verdade é que o motivo primordial pelo qual Dylan transubstanciou por completo minha trajetória foi justo o fato de, por meio da obra dele, eu ter chegado à obra de Kerouac. Dylan abriu as portas da percepção para mim, e depois arrancou-as dos batentes. Mas foi graças a Jack que me tornei tradutor, editor e escritor. Aos 22 anos, traduzi On the Road / Na Estrada, a mais conhecida obra de Kerouac e aquela que apresentou ao mundo a chamada Geração Beat, da qual Jack, junto com Ginsberg e Burroughs foi o principal avatar. Graças a isso, pude fazer a transição do jornalismo para o mundo editorial e acabei traduzindo e editando várias outras obras dos beats, bem como de autores influenciados por eles, tais e quais Charles Bukowski, John Fante, Sam Shepard e por aí vai. Orgulho-me, portanto, de ter ajudado a desencaminhar duas, talvez três, gerações de leitores.
Embora nascido nos EUA, Jack Kerouac era de origem franco-canadense e até os seis anos de idade falava apenas o joual, um dialeto do francês. Numa terra obcecada pelas consoantes, Jack amava as vogais, e dessa forma, conseguiu, por vias transversas, capturar a prosódia do inglês, o som das ruas, o linguajar dos marginais e alterativos, forjando a mística do rebelde cheio de causas, do viajante solitário, do hipster, do white negro. Kerouac deu voz aos que tinham sido calados pelo sonho de consumo e afluência do tal “american way of life”, esse sonho vazio a flertar com o pesadelo existencial. Aditivado por colossais doses de benzedrina, ele inventou a “prosa espontânea”, uma escrita frenética, similar às furiosas pinceladas de Jackson Pollock e à espiral de notas impossíveis do sax de Charlie Parker.
Feito um cruzado rumo à Terra Santa, peregrinei várias vezes – como Dylan – ao túmulo de Jack. Visitei a casa onde ele nasceu e a casa onde ele morreu. Percorri as trilhas que ele palmilhou e refiz em 1979 a viagem de carona que ele fez de Nova York a San Francisco, esticando-a até Porto Alegre. Passei a emular seu estilo literário, seu ímpeto e fulgor, sua cascata de palavras, vertendo adjetivos aos borbotões. Passei a acreditar só em mim e a ignorar os muxoxos de quem jamais fora capaz de largar tudo e meter o pé na estrada. Estimulei minhas filhas, amigos, mulheres e ex-mulheres a abandonar o lar, desatar os laços, desfazer os nós, soltar as amarras, zarpando pelos mares de morros e mares nunca dantes navegados. Carrego Jack Kerouac no coração e na mente, a cada passo do caminho. E se você perguntar para onde estamos indo, digo só que chegaremos lá.
Jack Kerouac nasceu em 12 de março de 1922. Para mim, sempre caudaloso e dado aos excessos, esse século foi todinho dele.