Mentiras sinceras sempre interessaram Bob Dylan – e, se ele tomasse conhecimento do verso cantado por Cazuza, é bem possível que se apropriasse dele. Sem dar os créditos, é claro: a velha e boa apropriação indébita, típica do blues e do folk, que o genial e genioso bardo norte-americano tantas vezes perpetrou. Love & Theft, sacumé? Amor e roubo...
Bob Dylan forjou o próprio nome – e, certa vez, se rebatizou de “Aliás”. Bob Dylan fabulou um passado glorioso para si quando mal havia saído das fraldas. Bob Dylan falseou a própria autobiografia – e ganhou o prêmio Pulitzer. Bob Dylan plagiou o discurso que fez para agradecer o Prêmio Nobel. Bob Dylan inventou a si mesmo. Desde o rascunho. Não foi o primeiro a ter-se inventado. Mas foi o primeiro a inventar Bob Dylan. Bob Dylan é um fingidor: finge que é dor a dor que deveras sente – e que logo repassa para quem o segue ou o cerca.
Assim, o que esperar de um documentário sobre Bob Dylan senão uma história eivada de meias mentiras e verdades inteiras? Uma sequência de realidades paralelas, um jogo de espelhos, um labirinto de palavras, volteios e sinuosidades conduzindo para onde interessa: o coração da verdadeira arte?
No último dia 12, estreou mundialmente na Netflix o documentário Rolling Thunder Revue, sobre a turnê relampejante com a qual Dylan tomou de assalto a costa leste dos EUA em 1975. O filme, dirigido por Martin Scorsese, se baseia nas imagens que a equipe contratada pelo próprio Dylan gravou para o malsucedido Renaldo & Clara, filme de quatro horas e meia que o cantor lançou em 1978 – e que ninguém viu. E quem viu, não entendeu lhufas.
Ocorre que no documentário de Scorsese vários depoimentos são dados por personagens fictícios. A questão é que, através de seus duplos, os atores despejam lorotas e balelas mais realistas que o rei. O resmungão diretor Van Dorp, por exemplo, é Howard Alk, codiretor de Renaldo & Clara, que se matou na casa de Dylan na noite de Ano-Novo de 1982 – e conseguiu ferir o supostamente inatingível Dylan. O produtor da turnê, que só reclama dos prejuízos, emula o verdadeiro tour manager: o próprio Dylan, que quase faliu com a desmiolada aventura. O político democrata que nunca existiu revela o apoio velado que Dylan sempre deu a presidentes como Carter (que aparece de verdade), tão diferente de Nixon, o Dick Vigarista (também presente no doc).
E Sharon Stone? Bom, sobre o papel de Sharon Stone, o decoro recomenda calar. Este é um jornal de família.
Mas o que importa é que, nesse mundo de fake news, de falsos messias e gurus de pés de barro e boca suja, as mentiras sinceras de Bob Dylan desnudam a verdade tal como ela é: a musa vestal e tímida da qual a genuína arte sempre foi, e jamais deixará de ser, irmã siamesa. Podes crer: as mentiras de Bob Dylan são legítimas, bró! Até porque vêm com certificado de autenticidade: a assinatura fulgurante dum falsário veraz.