“É fácil traduzir”, asseverou um certo Vilson Scholz, em entrevista publicada nas páginas da minha, da sua, da nossa Zero Hora. “O tradutor não tem dificuldade de fazer seu trabalho”, completou ele, que é consultor de tradução da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), entidade responsável pela versão em português da Bíblia usada pelas igrejas evangélicas que pululam por este país.
“É fácil traduzir”, disse Scholz, obtendo no ato minha atenção e despertando não sei se minha inveja ou minha ira. Se ele falou isso, pensei, deve ser porque há de ter sido iluminado pelas línguas de fogo do Espírito Santo. Pois, para mim, que traduzi 22 livros, a tarefa sempre foi um suplício.
Ou talvez a diferença resida no fato de que Scholz não encarou textos (con)sagrados, como On the Road, de Jack Kerouac, “a bíblia hippie”; ou as tiradas e tirinhas de Robert Crumb, o “papa dos quadrinhos underground”, nem a ressurreição de Tutankhamon, narrada por Howard Carter, espécie de Santo Graal da arqueologia.
“Felizmente o tradutor não precisa se preocupar: deixa que outros briguem para ver o que (ele traduziu) significa”, prosseguiu o consultor da SBB na inolvidável entrevista, coroando seu corolário com a frase lapidar: “Às vezes não precisa dizer tudo o que está lá; às vezes, precisa dizer mais”.
Valei-me, meu bom São Jerônimo!
Discorrer sobre as complexidades de uma tradução – qualquer tradução – no espaço exíguo de uma coluna de jornal já configura uma temeridade. Refletir sobre a tradução da Bíblia, então, é um descaramento, quase um desaforo. Basta lembrar o caso de William Tyndale – inventor de mais de uma dúzia de palavras em inglês, dentre elas, acredite, “beautiful” –, que em 1536 foi considerado herege, sendo estrangulado e depois queimado, por causa de sua tradução (de resto maravilhosa) da Bíblia, feita direto do grego e do hebreu.
Mas foram duas outras traduções da Bíblia que mudaram a história do Ocidente: a de Lutero, que em 1522 faria soprar os ventos ardentes e cambiantes da Reforma Protestante, e a do rei James, levada a cabo por uma equipe de 49 tradutores e publicada em 1611 após quatro anos de árdua labuta. No prefácio da primeira edição de James está dito: “A tradução é o que abre a janela, para deixar a luz entrar; o que rompe a casca, para que possamos comer o grão; o que afasta a cortina, para que possamos contemplar o lugar mais sagrado; o que remove a tampa do poço para que possamos sorver a água”.
Ambas as traduções foram feitas para libertar o leitor dos constrangimentos do tempo e do espaço e fazê-lo mergulhar no cânone sagrado, sem jamais simplificar nada em nome de uma explicação rasa mas trazendo à superfície do texto a múltipla profundidade dos significados. A Bíblia dos evangélicos segue o caminho oposto. Quer um conselho de irmão? Fuja dela. Vá atrás da versão do rei James.
Antes que uma vaca – e não um camelo – passe pelo buraco de uma agulha.