Traduzi 22 livros. Acho que sofri a cada linha – ou deveria dizer a cada palavra? Claro que houve momentos de transcendência e glória, de contato quase místico com o espírito do autor. Mas a questão é que, quando você se devota de verdade ao original, quando decide que não vai desistir enquanto não achar que fez justiça a ele; não tiver certeza de que está sendo literário e não literal, de que se manteve fiel não só ao estilo mas à essência do escritor cujas palavras agora estão em suas mãos, então verá que está metido num trabalho incessante, quase aterrador, mutável e mutante. Um trabalho que quase invariavelmente vai lhe parecer insatisfatório.
Sim, se você é um tradutor e não um traidor, se ama, admira e respeita o autor que se dispôs a traduzir, se quer se manter fiel não só a ele, mas a si mesmo e – oh céus – ao leitor que lerá a obra sem ter acesso ao original (ou sem se dar ao trabalho de cotejar o texto de partida), repito e reforço: prepare-se para ser atormentado por dúvidas cruéis, viver dilemas aparentemente insolúveis, fazer escolhas impossíveis. E ganhando pouco.
Tive alguns instantes de glória, os maiores (e mais duradouros) justo graças à minha primeira tradução, a de On the Road, de Jack Kerouac, embora o editor tenha decidido chamar o livro de Pé na Estrada. Hoje, publicado pela L&PM, chama-se como sempre deveria ter sido: Na Estrada. Tive também meus naufrágios. Lembro-me de dois, ambos vinculados ao dramaturgo Sam Shepard. Traduzi Fool for Love como Louco de Amor e só depois de o livro pronto percebi que “Louco para Amar” era muito melhor. E, na primeira linha do primeiro conto de um livro dele escrevi “ar marinho”. Mas existe a palavra “maresia”...
Falo isso porque a Companhia das Letras acaba de lançar o segundo volume das letras de Bob Dylan, aquele cantor que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, sabe? O primeiro volume já tinha sido um miserável desastre. Não comprei, não li e não pretendo ler o segundo. Mas como amo Dylan, as pessoas me enviam tudo relativo a ele. E assim chegaram a mim os títulos dos discos traduzidos. Empire Burlesque virou “Império Farsa”, Slow Train Coming ficou “Trem Lento Chegando” e Rough and Rowdy Ways materializou-se como “Grosseria e Arruaça”. Esse último título até que cairia bem caso usado para definir o trabalho do tradutor, que aliás declarou não ser muito fã do Bob.
Como conheci Dylan pessoalmente, posso imaginá-lo pegando um trem expresso para acabar com a arruaça e com o império da farsa. Com certa grosseria. De todo modo, agradeço aos deuses não ter caído sobre meus frágeis ombros a tarefa de tentar fazer a língua de Dylan roçar na língua de Camões. Não tenho mais idade para noites em claro, ajoelhado no milho, rezando para São Jerônimo, o patrono dos tradutores. Prefiro açoitar os outros.