Lembro de tudo: do dia, da hora, da inflexão da luz, da roupa que vestia e acima de tudo do impacto que aquilo teve sobre mim. Era 8 de março de 1975. Eu tinha 16 anos e o sol poente filtrava-se pelas frestas da veneziana. Vestia uma camisa social azul com um monograma – eram as iniciais do nome do meu pai, M.B., denunciando que a peça fora subtraída. Então, quando a agulha tocou no vinil lançando aquele chiado mágico (que as mídias digitais trataram de surrupiar), e a voz rascante de Bob Dylan rasgou a cena como se tudo fosse de papel, minha vida deu um duplo twist carpado.
Dylan soou como um profeta com a garganta repleta de trovões. Mas não pregou no deserto, pois tão logo acabei de ouvir o álbum Before the Flood, houve um dilúvio, uma erupção, um maremoto, um ciclone: foi um rio que passou em minha vida e meu coração (e minha mente, meu corpo e minha alma) se deixaram levar. Jurei que ninguém jamais voltaria a mandar em mim; que eu seria um rebelde indômito e inconformista, um beat, um punk, um hippie (quase um rajneesh). Que nunca deixaria de afrontar a lei iniqua e a ordem injusta, a autoridade constituída, a caretice, o conformismo e a bunda molice. Quase meio século depois, posso jurar de novo, de pés juntos e mãos postas: cumpri à risca a promessa.
Bob Dylan mudou minha vida de todas as formas possíveis. Devo à vida e à obra dele minha própria obra e quase minha vida em sua inteireza. Os livros que traduzi, que editei e que escrevi foram todos feitos sob inspiração dele – e ao som de dezenas de suas mais de 600 canções. Até minha imersão na história do Brasil se deu por influência dele: fiquei com tanta vergonha por conhecer tanto a história dos EUA e só fiapos da de meu próprio país, que decidi saber mais.
Desde aquele dia santo de guarda, convivo com Dylan – todos eles. O Dylan folk, com olhar sonhador e letras utópicas, o Dylan roqueiro de cabelos hirsutos e óculos e letras indevassáveis, o Dylan rural criando filhos e galinhas em Woodstock, o Dylan profeta irado de 1974, o Dylan cara pálida pintada de Rolling Thunder, soltando furações e Hurricane; o Dylan pastor evangélico ensandecido, que encontrou Jesus num motel de beira de estrada; o incansável Dylan da Never Ending Tour, o Dylan crooner emulando estilhaços de Sinatra.
Duas de minhas três ex-mulheres o veneram e a terceira acabou traduzindo a autobiografia dele. Minhas três filhas o amam e duas o encontraram pessoalmente. Minha mulher e minha enteada cruzaram com ele trotando pelo Parcão, numa noite fria e solitária. Meus netos o imitam e riem de algumas de suas vozes. Hoje Bob Dylan faz 80 anos. Quando festejarmos seu centenário, em 2041, terei recém feito a idade que Bob tem hoje. E ainda estaremos rolando como as pedras que rolam à beira da estrada.