A primeira vez em que o aniversariante desta segunda-feira (24) desembarcou em Porto Alegre foi às 12h30min do dia 13 de agosto de 1991. Vestia jaqueta azul de náilon impermeável com capuz, calça preta, moletom branco com zíper aberto até a parte superior, camisa preta, óculos escuros, botas de caubói, cabelo desalinhado contendo fios grisalhos e segurando um guarda-chuva grande na mão — embora o tempo estivesse ensolarado. Cercado por seguranças, que o protegiam de alguns fotógrafos e jornalistas, ele não disse uma palavra até chegar ao ônibus que o conduziu do aeroporto para o hotel. Vindo de Montevidéu, o artista carregava um ar cansado, como se expressasse: "Todo dia isso". Ou se perguntasse: "Como vim parar aqui?". Bem, ele voltaria à capital gaúcha outras duas vezes.
Robert Allen Zimmerman completa 80 anos nesta segunda. Compositor, cantor, pintor, ator e escritor norte-americano, ele é mais conhecido como Bob Dylan. São dele canções como Like a Rolling Stone, Blowin' in the Wind, Mr. Tambourine Man, Hurricane, entre tantas outras, que o alçam ao posto de um dos maiores nomes da história da música universal. Em 2016, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, sob a justificativa de ter criado um novo modo de expressão poética na tradição americana.
Bob Dylan se apresentou três vezes em Porto Alegre: em 1991, 1998 e 2012. Na primeira vez, ele permaneceria três dias na Capital — desembarcou um dia antes de sua apresentação no Gigantinho, marcada para 14 de agosto. Dylan partiu no dia seguinte. A turnê seguiria para São Paulo (16 e 17), Belo Horizonte (20) e Rio de Janeiro (21).
Dylan sempre conservou sua personalidade complexa e enigmática. Introspectivo e reservado, o artista é pouco afeito a badalações — tietagens, aparições públicas, entrevistas etc. Ele sequer foi receber seu Nobel (mandou Patti Smith no lugar). Então, suas vindas a Porto Alegre são rodeadas de mistério.
Segundo reportagem de Zero Hora datada de 15 de agosto de 1991, desde que deu entrada no Plaza São Rafael, Dylan só teria descido para jantar na churrascaria Capitão Rodrigo, do próprio hotel, na noite do dia 13. "Comeu carne branca e bebeu vinho tinto e água mineral com gás", descreveu a publicação.
Outra versão sobre o que ocorreu no primeiro dia é do jornalista e escritor Eduardo Bueno, o Peninha, que estava no entourage de Dylan. Peninha conta que conseguiu se aproximar do artista e de sua equipe na vinda anterior dele ao país, em 1990.
No mesmo dia em que Dylan chegou a Porto Alegre, o jornalista relata que levou o cantor e seu agente, Victor Maymudes, ao Morro Santa Tereza. Lá, observaram o pôr do sol. Depois, foram ao Mercado Público, onde o artista experimentou a salada de frutas com nata. Dali, partiram a pé até o hotel.
— Ninguém o reconheceu enquanto a gente circulava. Dylan só estava de óculos escuros, seria facilmente reconhecível. Estava na cara que ele achou a melhor coisa que aconteceu — lembra Peninha.
A abertura do show ficou por conta de um duo formado por Duca Leindecker e Frank Solari. Dylan os acompanhou do backstage. Tanto que a dupla foi convidada para abrir as demais apresentações brasileiras do cantor. Porém, foi só no Rio que Duca conseguiu trocar umas poucas palavras com Dylan. Sorrindo, o artista apertou a mão do músico gaúcho, falou que tinha gostado muito do som da dupla e que estava feliz por tê-los tocando na abertura. E foi isso.
Sobre a primeira apresentação em POA, a reportagem de Zero Hora apontou que Dylan "levantou e enlouqueceu a massa, que cantou junto e fez tremer o Gigantinho" e que "foi um show limpo em que não faltou nada", diante de um público estimado de 12 mil pessoas. No entanto, "houve estranheza entre fãs desavisados", pois "Dylan não manteve os arranjos originais dos seus clássicos hinos de protesto". É comum o músico reinventar sua obra em cada apresentação.
1998
O segundo show de Bob Dylan em Porto Alegre foi realizado no Opinião, diante de 1,5 mil pessoas, em 7 de abril de 1998 (tendo chegado na tarde do dia anterior). Foi o único show solo do artista no Brasil naquele ano: ele estava acompanhando a turnê dos Rolling Stones, fazendo a abertura. Depois de Porto Alegre, Dylan acompanhou os ingleses no Rio e em São Paulo.
Quem trouxe o artista à Capital pela segunda vez foi a Opinião Produtora. Segundo o sócio-diretor, Cláudio "Magrão" Fávero, a ideia inicial era fechar com os Rolling Stones.
— Foi superousado o que tentamos fazer, mas não conseguimos viabilizar. Aí surgiu a oportunidade de trazer o Bob Dylan para o Opinião. O que seria um prêmio de consolação, para nós, era o nosso sonho. Foi uma coisa muito marcante, um divisor de águas para a gente conseguir o posicionamento que temos até hoje — recorda Cláudio.
Como todos os ingressos para o show de Dylan no Opinião foram vendidos em poucos dias, a produtora chegou a abrir as negociações para uma segunda noite com o artista, mas acabou não se concretizando.
— Ele é exatamente o mesmo perfil que vemos nas entrevistas: um cara mais introspectivo, mais tranquilo, mais na dele — aponta o empresário.
O jornalista Marcelo Ferla escreveu para Zero Hora que, em seu segundo show na capital gaúcha, "Dylan foi roqueiro até a medula e chegou a beirar o pop em sua hora e meia de show". "Mesmo que boa parte do público não conhecesse algumas músicas de seu repertório, ele insistiu em canções novas ou que não pertencem aos seus álbuns de greatest hits. E convenceu ao ponto de ser ovacionado ruidosamente durante e ao final do espetáculo", destacou.
Após sua apresentação no Opinião, Dylan ficou mais um tempo em Porto Alegre — Cláudio estima que tenha sido até quatro dias. Segundo o empresário, a Capital gaúcha era uma praça mais barata para se deixar o artista do que São Paulo, por exemplo. O empresário crê que Dylan não saiu do Plaza São Rafael, onde ficou hospedado novamente. Para Peninha, o artista deve ter visitado a serra gaúcha, pois no livro de pinturas dele, The Brazil Series, haveria cenas que remetem à região, como vinícolas e paisagens.
2012
Fechando a trilogia, Dylan voltou a Porto Alegre em 2012. Chegou em 23 de abril, fez o show no Pepsi On Stage no dia 24 e foi embora logo após a apresentação. O show, desta vez, foi descrito pela reportagem de Zero Hora como aquele em que o artista "mostrou uma faceta descontraída e, na medida do possível, empolgada".
Por outro lado, o bardo foi ainda mais reservado nesta passagem: ele não permitiu que fotógrafos da imprensa registrassem a apresentação. As imagens que circulam desse show partem do público, a distância. Nos bastidores, o cantor foi novamente discreto.
— Uma pessoa bem tranquila. Não tivemos qualquer problema com ele de qualquer transtorno. Exigências normais, nada fora do comum — frisa Lucas Giacomolli, então sócio-proprietário da Hits Entretenimento, que trouxe o músico.
Naquela passagem, Dylan ficou hospedado no Hotel Sheraton, no bairro Moinhos de Vento. Ele gostava de passear acompanhado só de um segurança, enquanto observava as casas da Capital gaúcha. E andou pelo Parcão. Quem o encontrou por lá, na noite anterior ao show, foi o trio formado por Eduardo Bueno e a escritora Paula Taitelbaum, além da filha Clara. A garota estava completando 11 anos na ocasião.
Como Paula descreve em texto publicado no blog da editora L&PM, eles sabiam que o artista estava na cidade, em um hotel perto de casa. Após saírem para jantar, deixaram o restaurante lá pelas 22h e resolverem fazer um caminho mais longo para quem sabe esbarrar com o cantor. Clara insistiu na ideia.
"De repente, vimos, sob a penumbra das árvores, entre a luz difusa, duas pessoas caminhando bem devagar. 'É ele!', gritou Eduardo. E parou o carro. E era ele. Ele!", relata Paula na publicação. O trio avistou Dylan conversando com uma mulher enquanto caminhava. Clara saltou do carro e foi em direção ao artista, acompanhada da mãe. Peninha ficou mais para atrás. Paula conta que o encontro foi assim:
"Ao ver Clara, Dylan sorriu com os olhos. Uma criança faz toda a diferença… 'Hi, Bob'. 'I'm very nervous", disse eu (se isso é coisa que se diga!!!). 'It's her birthday' ('É o aniversário dela'), falei, apontando para ela. Ele abriu um sorriso gentil: 'Oh, it's your birthday! Happy birthday' ('Oh, é seu aniversário! Feliz aniversário!'). Então Clara tirou um bilhete da bolsa e ofereceu a ele. Um bilhete que ninguém sabia que ela tinha feito. Estava escrito e desenhado com um coração 'I love Bob. From Clara / To Bob Dylan' ('Eu amo Bob. De Clara / Para Bob Dylan'). Ele pegou o bilhete e sorriu ainda mais, apertando os olhos finos de um azul translúcido, capazes de iluminar a noite fria. (...) Então, ele ergueu o bilhete, sacudiu-o no ar e o apontou em direção a ela, deixando claro que iria guardá-lo. Eu agradeci e disse 'See you tomorrow' ('Vejo você amanhã') (but “Tomorrow is a long time” devia ter emendado). Eles continuaram caminhando. Eu tremia e chorava. Clara pulava".