“Ontem.” Creio que já no meu primeiro dia no jornalismo – vivido, aliás, exatamente aqui, neste mesmo e prestigiado jornal e, por sinal, prestes a completar, oh céus, 45 anos –, fui alertado de que não era de bom tom abrir uma matéria com a palavra “ontem”. Mas parece que as regras mudaram e, tanto aqui, neste prestigiado jornal, como noutros que por aí circulam, “ontem” hoje passa batido.
Talvez por isso, aqui estou eu me referindo a ontem. Mas não ontem, 29 de julho de 2021, mas ontem, 29 de julho de 1961, há exatos 60 anos (e um dia, hoje), quando Bob Dylan deu seu primeiro show pago. Creio que não devem ser mais do que cinco, dentre os 15 leitores que me acompanham, aqueles de fato interessados nas façanhas do Shakespeare do pop-folk-rock-country-blues. Mas a questão é que Bob Dylan não apenas é, disparado, a maior de minhas obsessões, como a efeméride se impõe.
“A” efeméride, não: as efemérides. Afinal, Dylan recém fez 80 anos (em 24 de maio), sua primeira apresentação paga foi “ontem” (há 60 anos e um dia) e no último dia 18 apresentou um inesquecível show “ao vivo” em streaming, Shadow Kingdom, um prodígio em conteúdo e forma que lançou novas sombras e luzes sobre uma carreira que sempre deixou fulgurantes imagens silhuetadas na mente dos que a acompanham.
Na enxurrada de livros lançados na esteira dos 80 anos de Dylan, o mais bombástico foi obra de Clinton Heylin, tido como o “maior, o mais sério e possivelmente o único dylanólogo de respeito”. Ocorre que em março de 2016, Dylan vendeu seu arquivo pessoal – com mais de 6 mil itens – para a George Kaiser Foundation, que vai inaugurar o estonteante Bob Dylan Center, em Tulsa, Oklahoma. E Heylin foi o primeiro (e um dos raros) a ter acesso ao material inédito. E embora já tivesse escrito oito livros sobre o músico, ele concluiu que era preciso rever tudo à luz dos novos documentos. Por isso, acaba de lançar The Double Life of Bob Dylan, com mais de 500 páginas, e só a primeira parte de uma trilogia, pois esse primeiro volume cobre apenas de 1941 a 1966.
E tudo o que ocorreu a Clinton Heylin “denunciar”, após escarafunchar nos rascunhos de Bob, foi que um dos mais profícuos e influentes compositores do século 20 é um “mitômano”, o mentiroso patológico cuja própria autobiografia, Crônicas (ganhadora do prêmio Pulitzer e que ajudou Dylan a levar o Nobel de Literatura), é quase uma obra de ficção; ou seja, uma autobiografia não autorizada. Heylin é um intelectual que já escreveu sobre Orson Welles, Shakespeare e Marlowe. Mas, ao que tudo indica, nunca leu Fernando Pessoa. Se tivesse, saberia que “o poeta é um fingidor... chega a fingir que é dor a dor que deveras sente” e entenderia que as mentiras de Bob Dylan são mais reais do que as verdades que ele julga ter encontrado em seu arquivo morto.