Não é preciso ser nenhum Einstein para viajar na relatividade e deixar-se soltar – ou ser aprisionado – pelo minueto que tempo e espaço bailam todas as horas, numa dança que é ao mesmo tempo sedução e duelo. Que o tempo da pandemia escoou ainda mais esquisito, disso ninguém dúvida. Eu só não imaginava que, após um semestre trancado em casa, fosse deparar com tantas e tamanhas transformações no espaço tão logo enfiasse a cabeça para fora da toca. Mas o fato é que, enquanto boa parte de nós se mantinha em reclusão, as construtoras X, Y e Z – sem falar, é claro, na construtora W – se puseram em marcha, destruindo tal quantidade de casarões no velho Moinhos de Vento, na nova Bela Vista e no Mont’ Serrat que já não podem ser contados nos dedos das mãos. E não basta trocar os pés pelas mãos: é preciso usar os quatro e ainda pedir ajuda aos universitários.
Lembra da tal Calçada da Fama esquina com Padre Chagas? Pois a construtora X – ou seria a W? – acaba de envolver com uma tarja preta os casarões que abrigavam Dado Bier, Le Bistrô e Constantino. Vai sacrificá-los e erguer ali medonhas torres, iguais às que brotaram na Luciana de Abreu, no casario derrubado na calada da noite, às vésperas do Natal de 2016, após longa batalha judicial. Na Miguel Tostes tombaram casas ancestrais e a construtora das histórias bem destruídas edifica ali sua própria e horrorosa torre. Ainda mais estarrecedora é a cena nos altos da Bordini, onde seis mansões vieram abaixo, cortesia das construtoras de ouro e fel, ops, mel.
A que mais me doeu ver ruir é a casa onde os irmãos Gerdau foram felizes. Porque, embora não seja biógrafo da família, tive certas relações com ela e até ajudei a formatar o projeto que tornaria aquele lar um pequeno museu. Não sei se foi a crise no mercado do aço ou se um súbito flerte com a amnésia que levou o clã a passar sua memória nos cobres. Como não sou comunista, respeito a propriedade privada – mas sempre achei que a trajetória da Gerdau fosse motivo de orgulho e pertencesse um pouco a todos nós. Eu estava enganado.
Por falar em comunismo, Manuela D’Ávila foi derrotada nas eleições. Perdeu de vareio nos ditos bairros e o vencedor recebeu doações de donos de construtoras. Lícito supor que tal financiamento não tenha sido feito para que o novo prefeito tombe prédios, mas para que não se meta enquanto os velhos tombam e os novos proliferem feito células fora de controle.
O corpo da cidade, como todos, não só é propenso a doenças como é tridimensional. Mas é apenas na quarta dimensão – a do tempo – que ele adquire sentido e história. Por isso, se dos tais casarões não restará pedra sobre pedra, que se preserve na memória ao menos o nome daqueles que os puseram abaixo e que nos deixam, aqui e agora, perdidos no espaço.