Luar de prata banha as dunas malhadas pela sombra das nuvens que passam em silêncio. Uma cigana sonha que um galgo lambe-lhe a face na noite fria do deserto – mas são só os grãos de areia soprados pelo murmúrio da brisa a tangir o alaúde que repousa ao lado dela. Um tigre espreita entre as folhagens rijas da floresta dos pássaros que trinam e as folhas gotejam orvalho. Uma supernova exala seu último e ruidoso suspiro nos confins da galáxia – a luz, a quentura, o som dessa explosão vão levar milhares de anos em sua jornada até rebrilhar feito estrela cadente diante do casal enamorado no quiosque de uma cidade do interior.
Um xamã Alacaluf cruza o cabo de Hornos em sua canoa de casca: a última brasa da última árvore balouça na ânfora pousada entre suas pernas. A canoa corcoveia num mar funesto. O nevoeiro espreita; o continente se desfaz em migalhas e mergulha nas águas de cinzas enregeladas. Um trigal abana ao vento quente no planalto da Anatólia; hastes e grãos se vergam sob as patas da montaria do guerreiro cruzado que parte rumo a Jerusalém, onde a peste e a deslembrança o aguardam.
Um ônibus range na manhã desesperançada, na esquina da calle Maipu com a avenida Córdoba, no coração de Buenos Aires. A porta automática se abre com um suspiro metálico e Jorge Luis Borges, apoiado na bengala, desce e dá consigo mesmo parado na calçada, de gravata borboleta, já cego, o óculo pince-nez mal ajambrado no nariz arrebitado e um manuscrito provençal no bolso do paletó. É um trunfo de peso – só que a bengala do Borges recém-desembarcado tem cabo de marfim: marfim de unicórnio.
Uma poça d’água na estrada estreita de terra num canto esquecido dos Países Baixos, dois dias antes de rebentar a Primeira Guerra. Os galhos retorcidos da árvore esquálida se refletem nela. Folhas secas se desprendem, balbuciando num farfalhar cifrado: “Tarde demais, tarde demais”. As rodas de um blindado esfacelam a poça feito os estilhaços de um espelho partido. As águas turvas já não espelham nada. Mauritis Cornelius Escher tem 16 anos e ainda não sabe o que fazer da vida. Sonha em ser meteorologista: quer prever o mau tempo.
Balduíno Rambo espia o cânion e aspira a aragem perfumada que sopra do bojo. A cachoeira despenca feito véu de noiva no abismo em frente a ele. Invejosa, a mata se atira no vazio: uma cortina verde de arbustos robustos e mundos de liquens e musgos. O padre-geógrafo sabe que haverá de moldar a Fisionomia do Rio Grande do Sul em um tomo clássico, de capa dura e páginas amareladas por um tempo que ainda não nasceu.
O sol se põe nas bancas de revistas. Quem lê tanta notícia?