Preciso confessar: considero o Brasil um país chinelão. E acho que posso dizer isso de cadeira – reclinável, de rodinha e com encosto anatômico. Não só porque li – ou, vá lá, “compulsei” – cerca de 2 mil livros sobre a história pátria e escrevi mais de 30.
Não só porque já morei no, como diria eu, Primeiro Mundo. E não só porque vivo no suposto “bairro nobre” da Leal e Valerosa capital gaúcha.
Embora os dois primeiros argumentos contem, o ponto (nobre) que quero ressaltar é o último. Faz já um tempo, a zona onde moro deixou de ser zona residencial (nobre?) para virar “zona mista” (mais ou menos nobre). Os casarões foram quase todos postos abaixo e em seu lugar pipocaram, feito cogumelos venenosos, prédios comerciais.
Se você adquirir um “conjunto” num deles, será informado de que obras ou reformas só são permitidas “depois das 19h, para não atrapalhar os demais condôminos”. Assim, pelas 20h (o pessoal “atrasa”, sacumé) inicia-se uma sinfonia de onomatopeias – bzzz-bzzz, vruum-umm, toc-toc-toc, pec-pec-pec, shhhiiiink, pong-pong-pong, iiiiinnk – que não tem hora para terminar e cujo maestro, claro, está ausente, talvez desfrutando o sono dos injustos nalgum condomínio fechado em alguma nova zona nova-rica onde a minoria silenciosa agora dorme.
Os nomes desses prédios já revelam o abismo entre intenção e gesto. São quase títulos nobiliárquicos: Central Park, Champs Élysées, Quinta Avenida Center. Há um que exibe luzes estroboscópicas a noite toda, outro que tem 180 graus de miopia e aquele que preferiu homenagear Albert Einstein, talvez para exercer sua peculiar versão da teoria da relatividade: silêncio de dia, barulho à noite.
Óbvio que diante das trevas que envolvem o Brasil – o abismo da desigualdade, a violência, a devastação da Amazônia, o desgoverno –, minhas lamúrias são miudezas, cisco, poeira. White men problems na sua mais plena acepção. Mas justo por isso me parecem bem reveladores da dita “elite branca” e do país que ela quer construir, na surdina e no grito, com as serras e furadeiras de suas salas comerciais, que eles jamais deixariam soar de madrugada em suas salas de estar – e que sabem não ser permitidas nem aqui nem acolá, na Quinta Avenida ou na Champs Élysées.
De todo modo, espero que não me julguem um jornalista bundão por trazer tais questiúnculas à tona, nem queiram encher minha boca de porrada – até porque não fiz nenhuma pergunta. Mas faço uma agora: presidente Jair Bolsonaro, por que sua esposa Micheque recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz? Se for para comprar uma fantástica loja de chocolates aqui no bairro, por favor, peça para ela parar as obras às 22h, embora cumprir a lei não seja o forte da família.