Após meses de confinamento na penumbra gotejante das masmorras da fortaleza de Pedro e Paulo, os prisioneiros arrastavam-se pela praça central de São Petersburgo ofuscados pela luminosidade oblíqua que banhava o palco de sua execução. Entre os padecentes, havia um jovem escritor de 26 anos. Os condenados subiram ao cadafalso e o pelotão de fuzilamento posicionou-se, empertigado para cumprir a ordem. "Preparar" – e o som metálico das espingardas sendo destravadas rasgou o ar gelado da manhã. "Apontar" – e os tambores rufaram, fúnebres.
Então, ao invés dos tiros, os sentenciados ouviram a ordem de clemência concedida pelo czar Nicolau I, que havia concebido aquele espetáculo sadicamente teatral. "Mas não houve alegria em voltar à vida", escreveria Fiódor Dostoiévski. "Eu não me importava mais – já havia passado pelo pior." Mas o pior estava por vir: Dostoiévski partiria para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria. Registrou isso tudo em suas soberbas e sombrias Recordações da Casa dos Mortos.
Li o livro aos 15 anos, com tradução de Rachel de Queiroz, ilustrado por Santa Rosa e editado por José Olympio. O exemplar era do meu pai: ele o ganhou, com dedicatória, das minhas tias Nelda e Edith, ao fazer 30 anos, em 9 de julho de 1958, 40 dias depois de eu nascer. Ainda guardo o volume que me fez mergulhar na alma russa.
E a alma russa misturar-se à minha.
Dostoiévski amava Gogol, o doente imaginário que queimou centenas de páginas manuscritas na lareira e, febril em seu delírio místico, desistiu da vida para conhecer as almas mortas que havia descrito como ninguém. Gogol amava Pushkin, o pai de todos, que decidiu lavar a honra com sangue – e o fez. Só que o sangue vertido foi o dele próprio. E ele morreu num duelo banal. Já Tolstói saiu sem dar palavra rumo à floresta hirsuta, em pleno inverno. Morreu de pneumonia – e desilusão.
Desilusão que levou Maiakovski a cometer o tresloucado gesto em seu apartamento em Moscou: o homem com o qual a "anatomia ficou louca", pois era "todo coração", estourou os miolos, enquanto Gorki, amigo de fé, irmão camarada de Stalin, morreu em circunstâncias misteriosas. Envenenado, dizem alguns.
A mando de Stalin, suspeitam todos.
Isso posto, parece lícito concluir que a Rússia trata mal seus escritores. Até pode ser. Mas só enquanto vivos. Após a morte, eles são endeusados em mármore, bronze ou granito, nas praças, ruas e parques, suas casas transformadas em museus, seus livros impressos aos milhões, seu legado cantado em prosa e verso por um povo de leitores.
Sim, muitos países batem a Rússia na bola. Mas que outra nação pode escalar um time de escritores como a que ora sedia a Copa? Ok, a Inglaterra e, vá lá, a França. Mas elas não estão em casa e jogam por linhas tortas. A trama se adensa e o desfecho se aproxima. Machado de Assis espreita de soslaio, com riso de mofa.