Você sabe, esse mundo é uma bola. Justamente por isso, é redondo e gira – embora haja uns sujeitos quadrados que insistam em dizer que a Terra é plana e, portanto, chata, como eles. Eppur si muove... Justamente por ser redondo e girar – como a bola aos pés do time comandado por Renato –, esse mundo não está parado e vem circulando muito por aí. Por isso, se tornou global. E tornou-se irremediavelmente global graças (e desgraças) às naus e caravelas portuguesas do século 16.
Não deixa de ser curioso, portanto, perceber que, embora esteja a bordo de um imponente A-380-800, espantosa máquina voadora, em meio ao luxo, ao conforto e à tecnologia de ponta, voando a 587 milhas por hora e a 39 mil pés de altitude, você está refazendo, com perturbadora exatidão, uma rota percorrida milhares de vezes por navios portugueses ao longo de mais de três seculos.
Sim, pois o vôo EK 262 da Emirates decolou de São Paulo, chegou num piscar de olhos ao Rio de Janeiro, mergulhou na escuridão que se debruçava sobre a madrugada do Oceano Atlântico e, após sete horas de voo, já sobreava novamente a terra. Não apenas terra, mas a mãe África. E, ainda por cima, bem acima da cidade de Acra, em Gana, onde em 1434 os portugueses ergueram o lúgubre Castelo da Mina, destinado a se tornar um dos maiores entrepostos de escravos da história da humanidade. Até Cristóvão Colombo (sem falar em Bartolomeu Dias) labutou por entre as masmorras gotejantes das quais mais de um milhão de escravos saíram para irrigar com suor e sangue as lavouras, as minas e as ruas que deram nervo ao Brasil.
Mas nuvens escuras pairavam sobre o amanhecer de Acra e você mal pode vislumbrar aquele lugar de danação, embora saiba que as ruínas do Castelo da Mina permanecem ali, como um monumento à dor e à ganância humanas. Como quer que seja, o pássaro de metal segue impávido sua rota, bordejando o golfo de Benin.
Então, num flash, surge, com a nitidez de uma foto digital, o emaranhado de rios fétidos e lagoas estagnadas envolto pelo caos urbano de Lagos, capital da Nigéria, de onde um outro milhão de escravos foi arrancado para dar vida e luz à Bahia, ao Rio, às Minas. Pois o voo passa ali justamente naquele momento em que o sol vem e nos desafia, trazendo da noite para o dia quem já não queria, filhos da mesma agonia, cuja maior arte é de viver da fé, só não se sabe fé em quê.
Antes que você possa articular uma resposta, Lagos também ficou para trás. E você nem precisa botar a cabeça para fora da janelinha do avião para saber que está mergulhando na África Equatorial profunda, com suas florestas se desertificando, seus ditadores postos e depostos e repostos, seus elefantes e gorilas e leões ainda sendo caçados (e Donald Trump, com sua cabeça oca, acaba de assinar um decreto permitindo que caçadores americanos levem suas cabeças decepadas - a dos animais que eles abatarem, não as suas próprias - para os EUA).
Sim, são pensamentos pesarosos, mas você poderá tentar dissipá-los com mais facilidade caso tenha a sorte de dispor de uma fileira de quatro poltronas só para si (mesmo lembrando que sua sorte resulta do azar de seus colegas, cujos vistos de trabalho não foram emitidos a tempo). Pois, se você estiver desfrutando dessa posição, poderá ligar os monitores à frente de todos os assentos. E, deste modo, desfrutar da imagem da câmera de proa que projeta o porvir, mirando Dubai, essa miragem de progresso e ilusão de futuro tremeluzindo como pirita nas areias do deserto da Península Arábica, ao mesmo tempo em que a câmera do bojo do avião aponta verticalmente para baixo e mostra a África negra, com suas inquietudes e miasmas ficando para trás, cedendo lugar ao mundo lunar das ravinas e ranhuras do deserto, com se aquilo fosse o rascunho da Terra. A câmera colocada na rabeira do avião revela o Brasil ficando cada vez mais para trás...
Mas, se esse mundo está mesmo cheio de problemas, isso não significa que devemos chutá-lo para longe, como Kannemann faz com qualquer bola que leva perigo à área do Grêmio. Será mais prudente usar a cabeça, como Geromel, ou matá-lo com suavidade no peito, como Luan, rolá-lo com carinho, como Arthur ou agarrá-lo com toda firmeza, como Marcelo Grohe.
Afinal, nossos adversários ainda não devem saber que estamos voando pela rota dos conquistadores – e pela companhia que os patrocina — com um único, ferrenho e inabalável objetivo: nós queremos acabaaaaaaar com o planeta!