Falemos de um falso conflito travado já há algum tempo no futebol brasileiro, mas agora renovado pela demissão de duas figuras emblemáticas para um dos exércitos. O Santos demitiu Jair Ventura e chamou Cuca. O Palmeiras mandou embora Roger Machado e foi buscar Felipão, que este ano completa 70 anos de uma carreira marcada pelo protagonismo. Pode-se chamá-lo de tudo, menos de medíocre. Não faz muito, Alex Stival, o Cuca, 55 anos, agora encarregado da missão de salvar do rebaixamento uma das maiores marcas da história do futebol em todos os tempos, que é o Santos eternamente de Pelé, habitava uma extensa lista de técnicos famosos desempregados.
Ele, Celso Roth, Joel Santana, Luxemburgo, Levir Culpi, Dorival Júnior e outros que minha memória traidora não me deixa lembrar. Todos perderam espaço, afogados pela onda dos interinos. Poucos, como Abel Braga e Mano Menezes, souberam resistir ao tsunami. Uma parte dessa nova realidade tem a ver com a crise. É mais barato dar chance a um auxiliar, na maioria dos casos cria da casa que conhece a base com a palma da mão, do que assinar contratos de rescisões milionárias. Segundo a ordem anterior, para controlar um vestiário de estrelas, a regra era alguém rodado, pulso firme, mais malandro do que a malandragem.
Formou-se uma reserva de mercado. Como se tornar experiente se ninguém te dá chance? Ali pela década de 1990, criou-se até a expressão "supertécnico", cujo emblema era Luxemburgo à beira do campo, de terno e gravata. Aos poucos, percebeu-se que o rendimento dos times não estava necessariamente atrelado à fama de técnicos que, numa espécie de dança das cadeiras, giravam pelos principais clubes. Os mais novos chegaram valorizando a análise de desempenho, em voga na Europa.
É o começo do conflito.
Com base na interpretação de estatísticas aplicadas, capturada por ferramentas cada vez mais complexas e específicas, a ênfase tática ganhou contornos intelectualizados até na linguagem. Termos como temporização, diagonais curtas, terço final e passes de ruptura ganharam as entrevistas coletivas. Um perfil diferente, logo interpretado como uma desvalorização do técnico ex-jogador, pejorativamente chamado de boleirão e paizão. Algo como a ciência em substituição ao empirismo. Jair e Roger, que sempre enfatizou a importância de estudar para virar técnico, se tornaram ícones da nova geração.
Por isso o rebuliço quando eles foram demitidos de Palmeiras e Santos, só comparável com a ebulição gerada pelos substitutos: Cuca e Felipão. O exército dos que odeiam estatística inflou o peito, proclamando vitória. Assim como os que limitam tudo à frieza dos números, desprezando a parcela de intuição que só a experiência concede, proclamavam um mundo novo à medida que os mais velhos iam perdendo o emprego. Trata-se de uma insuportável mania brasileira: o maniqueísmo. É isso ou aquilo. PT ou PSDB. Comunista ou anti-comunista. Coxinha ou petralha. Ivete ou Cláudia Leite. MPB ou sertanejo. Preto ou branco, como se não existisse o cinza.
Perguntaram a Cuca, em entrevista à Folha de S. Paulo, de que lado do balcão ele se posicionava no mercado dos técnicos. Ele defendeu os mais velhos, elogiou os acréscimos da nova geração e disse: "Sou uma uva nem verde, nem passada". É isso. O melhor técnico do Brasil é Tite. Seu diferencial é valorizar tanto o "cheiro do vestiário" quanto os calhamaços entregues a ele pelo Centro de e Pesquisa e Análise da Seleção. Às vezes, um lado pesa mais. Depois, o outro. Os que entenderem isso darão o passo adiante. Os que tomarem partido nesse falso conflito em que a verdade está só de um lado ficarão no meio do caminho.