Os defensores da liberdade sempre defendem a sua liberdade, ou a do seu país, ou a de sua classe, ou a de seus amigos. Você não vai ver alguém defendendo a liberdade dos outros. E, em geral, o defensor da liberdade não vê seres humanos entre os opressores. O opressor é sempre o Mal, é sempre o inimigo abjeto a ser eliminado.
Houve duas exceções luminosas, nessa questão: Mandela e Martin Luther King. Mandela passou 27 anos da sua vida preso. Quando enfim saiu da cadeia, o mundo não encontrou um homem amargo ou ressentido; encontrou um sábio. Mandela empenhou-se a ensinar aos sul-africanos que o branco opressor também era sul-africano e que todos teriam de conviver naquele país. Estive na África do Sul e conversei com muitos sul-africanos sobre isso. Constatei, em primeira mão, como o trabalho de catequese de Mandela foi bem-feito. A ação de Mandela foi o cristianismo aplicado. E funcionou divinamente.
Já o Doctor King, como chamam os americanos, mostrou ao mundo que a resistência pacífica é muito mais eficiente do que a belicosa. Foi ele, e não o agressivo Malcolm X, quem conseguiu a aprovação dos Direitos Civis nos anos 60, nos Estados Unidos. Doctor King não apontava culpados, apontava soluções.
Mas esses dois, como já disse, foram exceções. Usualmente, os patriotas e os revoltados estão em busca de inimigos a combater. Ou seja: eles procuram a guerra, não a paz. É muito mais bonito e muito mais heroico.
Veja agora o tema que está mobilizando o planeta há dois anos: a pandemia. Muitos alegaram o valor intangível da liberdade para fundamentar seus pontos de vista. É aí que você vê como a liberdade pode ser elástica. Você é livre para sair por aí infectando outras pessoas? Decerto que não. A vida em sociedade só é possível se regras de convivência forem respeitadas. É por essa razão que sou a favor de impor todas as restrições possíveis aos não vacinados. A pessoa tem direito de não se vacinar, mas, neste caso, sofrerá as consequências da escolha. Não viajará para determinados lugares, não poderá comparecer a todos os eventos. Essas coisas.
No entanto, nem eu, nem o governo, nem nada ou ninguém pode restringir o direito dessa pessoa de pensar ou emitir sua opinião contra a vacina.
Vou repetir, para ser bem compreendido: sou a favor da vacina e de impor restrições a quem não toma vacina, mas não aceito coagir ao silêncio quem quer de se expressar contra a vacina.
Digo isso a respeito do caso do cantor Neil Young versus Spotfy. Neil Young um monstro do rock, um libertário, amigo de Bob Dylan, autor de canções históricas, exigiu que o Spotfy retirasse da sua plataforma um podcast antivacina. O Spotfy não retirou. E ele retirou suas músicas do Spotfy.
Neil Young tem direito de fazer o que bem entender com suas músicas, mas, eticamente, por favor, que demonstração de autoritarismo, de antidemocracia, de arrogância e de covardia. Neil Young acha que pode decidir o que outras pessoas devem pensar ou falar. Ele diz o que é o certo e o impõe aos outros.
Lembro do episódio do Queer Museu, em Porto Alegre. As pessoas que pressionavam os patrocinadores do evento para impedir sua realização diziam ter direito a fazer boicote. Tinham mesmo, mas que vergonha. E que vergonha dos patrocinadores que cederam à pressão.
É fácil ser democrata com quem concorda com você. Aí qualquer um é libertário. Mas o verdadeiro caráter de uma pessoa ou de uma instituição aparece quando é preciso conviver com o contrário. Então você percebe que, para os covardes, a única democracia que existe é a deles próprios. A democracia dos outros não tem nenhum valor.