Você já deve ter ouvido falar no “Verão da Lata”. Aconteceu entre 1987 e 1988. O capitão de um navio australiano carregado com latas cheias de maconha descobriu que seria abordado pela patrulha costeira e, para não ser preso, jogou sua carga ao mar. Foi algo em torno de 15 mil latas que desceram pelo litoral, empurradas pela correnteza, e se espalharam pelas praias, algumas chegando até o Rio Grande do Sul.
Nunca fui maconheiro, sério, mas aquela história me animou. Porque as latas australianas viraram algo precioso e proibido. As pessoas iam à praia e ficavam olhando para o mar, para tentar encontrá-las boiando nas ondas. Se as achassem, era uma festa, era como se tivessem desenterrado um tesouro. Todos falavam na qualidade excepcional da erva da lata, o termo “da lata” virou adjetivo. Se você queria dizer que uma coisa era muito boa, dizia que ela era “da lata”.
Exatamente neste verão, fui a uma festa na Praia do Rincão, em Criciúma. Foi uma festa linda, ao ar livre, repleta de mulheres bonitas e bronzeadas, vestidas com aquelas roupas diáfanas das noites praianas. Todos riam e bebiam e conversavam e eu me sentia feliz. Aquele era o lugar do mundo aonde queria estar.
Hoje, tento me lembrar de mais detalhes da festa, mas não consigo. Só o que ficou gravado em mim foi a sensação de felicidade pela qual fui tomado naquela noite. Forço a memória, esforço-me para buscar pedaços de lembrança, mas pouco me vem. Lembro que meu amigo Ricardo Fabris estava lá, que a música era boa e depois tudo se esfumaça. A próxima imagem da noite que me ocorre não é da noite, é da manhã seguinte: eu caminhava pelas areias da Praia do Rincão, debaixo do sol forte e de um céu de azul impecável. Vestia as roupas da festa: camiseta, bermuda e uns tênis que eram moda na época, de cano alto, como usam os jogadores de basquete. Achei ruim caminhar de tênis na areia e os tirei, mas carregá-los nas mãos também era desconfortável. Eram uns tênis grandes, brancos e pensei que quem me visse veria primeiro os tênis. As pessoas se perguntariam: “Por que ele está levando aqueles tênis?”
Foi pensar nisso e um gaiato gritou debaixo de um guarda-sol:
— E aí, David! E esses tênis?
Acenei de volta e fui em frente, com raiva dos meus tênis, mas tentando manter a compostura. Aqueles tênis na praia eram uma humilhação. Tive vontade de jogá-los fora, mas, bem, havia pagado caro por eles. Segui pela areia, tentando caminhar com alguma dignidade, até que encontrei o local onde estavam meus amigos. Estavam amontoados à sombra de uns três guarda-sóis, sentados em cadeirinhas ou em toalhas no chão. Fui sorrindo em direção a eles, torcendo para que não reparassem nos meus tênis. Aproximei-me, saudando a todos, e, antes de me instalar, a mais bela menina do grupo ciciou:
— Tênis da lata, esses teus, hein?
E todo mundo passou a elogiar os meus tênis e eu me sentei e sorri e respirei fundo aquela doce maresia e me senti da lata. Sim, naquele dia de sol, eu fui da lata.