David Coimbra

David Coimbra

Colunista de ZH e GZH e comentarista da Rádio Gaúcha, teve 18 livros publicados. Prêmios: 10 ARI, Esso de Reportagem, Direitos Humanos, Habitasul de Literatura, Erico Verissimo de Literatura, Açorianos de Literatura, entre outros. David faleceu em 27 de maio de 2022 após 10 anos de luta contra o câncer. Suas crônicas seguirão disponíveis em GZH.

Cotidiano
Opinião

A vida do gato

Você precisa de mais, meu amigo. Você precisa de razões. Vá trabalhar

David Coimbra

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Por exemplo, o gato. Pense no dia do gato. Se ele é um gato de apartamento, como o da minha mãe, que tem três pernas (o gato, não a minha mãe), ele acorda, come, dorme de novo, acorda outra vez, come, bebe água, atende suas necessidades fisiológicas e volta a dormir. Esse é o dia do gato. É assim que ele passa a vida inteira. 

Se ele não é castrado, como é o gato de três pernas da minha mãe, ele se relaciona com gatinhas e tem filhotes. Mas nem cuida dos filhotes quando eles são bem pequeninhos. Quem faz isso é a gata. 

O leão não é muito diferente do gato. Ele atravessa quase que o dia inteiro dormindo à sombra, lá na savana, e, à noite, como não tem a minha mãe para lhe dar comida, dá uns rugidos e sai para caçar. Então, ele e as leoas encurralam um infeliz gnu e o capturam e o comem vivo – não é fácil ser gnu. 

Além disso, o que mais faz o leão? Ele caminha pela África. Vejo aqueles documentários da National Geographic e os leões estão sempre caminhando. Por que eles caminham tanto? Porque estão atrás de manadas de gnus ou de zebras ou de búfalos. E por que gnus, zebras e búfalos não param de se deslocar pela África? Isso eu não sei. Francamente, não entendo por que esses bichos não ficam quietos no mesmo lugar. 

A National Geographic bota nomes nos bichos e conta suas histórias com começo, meio e fim. Os nomes em geral são africanos, como, sei lá, Macuto. Eles filmam o leão Macuto por anos e o transformam em um indivíduo. Contam como Macuto conseguiu escapar das hienas quando jovem e como se tornou líder do território. Aí eles narram o que aconteceu no que chamam de Reino de Macuto, até que ele envelhece e é morto por um leão mais jovem, Zimba. É como se estivessem narrando a saga dos Tudors, na Inglaterra. 

Mas, na verdade, não é assim que funciona. Macuto e seu bando só caçam para se alimentar e, quando dominam um território, não é para ter mais poder e prestígio, é para desfrutar das fêmeas com exclusividade. Quer dizer: eles não fazem planos, nem traçam objetivos. Eles apenas vivem os dias. 

Nós, não. Nós não trabalhamos apenas para sobreviver, como os leões em caçada. Nós tampouco admitimos viver como o gato perneta da minha mãe, só comendo e dormindo o dia inteiro. Nós precisamos de algo que nos faça sentir úteis. 

Você reclama que trabalha demais, mas, se se aposentar, se parar, irá sentir falta da sua rotina cheia. Você não conseguirá tão-somente existir, como os bichos na natureza. Você precisa de uma razão. A sua vida precisa ter um sentido. Assim, se você se aposentar, irá fazer outro trabalho: irá cuidar do jardim, irá consertar a casa, irá escrever a história do seu avô. 

Para você, a vida é mais do que o alimento e o corpo é mais do que a roupa, como dizia Jesus. Você precisa de mais, meu amigo. Você precisa de razões. Vá trabalhar. 


 

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