Estava há 15 dias em lockdown, mas lockdown mesmo, encerrado em casa, sem sair nem para ir ao boteco da esquina. Óbvio, não podia sair, eu era um convalescente que mais ficava na cama do que de pé. Aliás, odeio ser convalescente. Não quero mais convalescer de nada, certo? Combinamos assim? Nada de convalescenças futuras?
Combinado.
Mas, como dizia, estava já angustiado com o lockdown, e propus para a Marcinha e o Bernardo:
— Vamos dar uma banda de carro pela Leal e Valerosa?
Ficar preso dentro de casa porque você quer é diferente de ficar preso porque você precisa e ficar preso porque você precisa é bem diferente de ficar porque você é obrigado a ficar. Era esse o meu caso. Era um presidiário da convalescença.
Toda essa situação, a pandemia, as dores da cirurgia, os outros problemas de saúde que tive, a necessidade de ficar em casa, tudo isso parecia algo ilusório, para mim. Parecia irreal, como se estivesse em um pesadelo.
A propósito, tenho um pesadelo recorrente que voltou a me acometer nesses dias de dor: estou jogando bola no Alim Pedro. É uma partida importante, não é peladinha. Avanço a passo pela intermediária de defesa e vejo que a bola vem para mim. Vem rasteira, mas saltitando no gramado irregular do Alim Pedro, em boa velocidade. Enquanto ela se aproxima, penso no que vou fazer em seguida. Os jogadores do passado contam que Pelé já sabia o que fazer com a bola antes que ela chegasse nele. É um atributo dos craques, essa antecipação, esse cálculo da jogada e de suas consequências.
Bem, eu estava pensando no que fazer, como um Pelé, só que, ao contrário dele, não me decidia. Devia dominar e passar para o Jorge Barnabé, que estava aberto na lateral? Ou dominar e avançar para o campo inimigo? Ou simplesmente dar um chutão? Quem sabe recuar para um zagueiro?
Enquanto não encontrava uma resposta, a bola chegou. Só que, antes de chegar, ela deu um pulinho traiçoeiro ao bater num cocoruto do campo. Eu esperava com o pé direito aberto, pronto para dominar de chapa, mas aquele pequeno desvio fez com que a bola escorregasse pela minha chuteira e fugisse, rebelde, direto para os pés de um adversário, fazendo todo o meu time gritar de indignação e me enchendo de vergonha.
Essa sensação de horror ao não conseguir dominar a bola, sensação de frustração, de decepção comigo mesmo, de impotência, é essa sensação que experimentava agora, desperto, ao permanecer tanto tempo fechado em casa.
Ver o horizonte me deu um alívio na alma, como se fosse um presidiário saindo da cadeia. Rodamos por algum tempo e finalmente atingimos o lugar mais bonito da cidade: a orla do Guaíba
Então, tinha de sair.
— Vamos? — insisti.
E os dois:
— Vamos!
A Marcinha dirigiria. Porque eu, afinal, convalescia. Saímos, pois, deslizando pela cidade. Era sábado e era fim de tarde. Ver o horizonte me deu um alívio na alma, como se fosse um presidiário saindo da cadeia. Minha cabeça se acalmou e respirei fundo. Rodamos por algum tempo e finalmente atingimos o lugar mais bonito da cidade: a orla do Guaíba.
Naquele momento, o sol estava mergulhando no rio, e deu ao céu uma cor entre o laranja e o rosa, linda, intensa, de regalar um Van Gogh. Surgiram-me vários pensamentos vendo aquele céu, aquele rio, aquela paisagem impressionista. Mas logo concluí que o que havia me encantado mesmo não era a natureza que nos envolvia; era a visão das pessoas. Elas caminhavam ou corriam ou andavam de bicicleta ou simplesmente tomavam chimarrão e admiravam o entardecer. Vê-las me fez um bem maior do que o céu de postagem no Instagram. “Por quê?”, fiquei me perguntando, enquanto rodávamos em direção ao Centro. Antes de chegar em casa, entendi o que representavam aquelas pessoas: vida. Caminhando, fotografando o céu, conversando ou apenas contemplando o horizonte, elas estavam vivendo. Foi isso que me animou, isso que me fez chegar em casa mais leve: saber que o bom da vida não é a grande façanha, a grande festa ou a grande realização. O bom da vida é, apenas, viver.