O sofrimento sublima? Quer dizer: a dor faz de você uma pessoa melhor? Gostaria de descobrir a resposta.
Tenho sofrido o meu quinhão, nos últimos tempos. Não vou fazer drama, sei que tem gente que sofre muito mais, ainda que, ao fim e ao cabo, sofrimento não possa ser medido. O que é insuportável para você pode ser fácil para mim, e vice-versa. Nunca subestimo a dor do outro. Nunca. Nem física, nem espiritual.
Mas, na verdade, o que me aconteceu foi algo quase prosaico: tive de me submeter a uma cirurgia na coluna vertebral. A operação foi um sucesso, o cirurgião é um virtuose do bisturi: Arthur Pereira Filho, do Hospital Moinhos de Vento. O homem vem de uma dinastia de médicos, é neto do Pereira Filho que deu o nome ao famoso pavilhão da Santa Casa. Pavilhão Pereira Filho. Ao saber disso, passei a chamá-lo de Pavilhão. “Arthur Pavilhão”, como o lendário zagueiro do Grêmio, Aírton Pavilhão, que, segundo praticamente todos que o viram jogar, foi o maior beque-central que já calçou uma chuteira no futebol gaúcho, quiçá brasileiro.
O doutor Arthur, gremistão que é, gostou do apelido. E eu mesmo, a partir daí, passei a vê-lo como um intransponível zagueiro protetor da neurologia e das vértebras humanas.
Mas, como dizia, deu tudo certo com a cirurgia, estou bem. Só que, é óbvio, tive cá meus padecimentos. Não vou entrar em detalhes para não aborrecer o leitor, citarei apenas um problema que, para mim, foi uma das piores torturas que já sofri, e ocorreu depois da operação: a prisão de ventre causada pelas drogas anestésicas.
Mais uma vez, pouparei o leitor dos pormenores escatológicos a propósito desse drama intestinal. Revelo, apenas, que me submeti a tamanhas indignidades, que me rebaixei tanto, que me humilhei a tal ponto, que poderia responder positivamente à pergunta que fiz na abertura dessa crônica: sim, o sofrimento sublima. Ou, pelo menos, faz com que você se torne mais humilde.
Porque a verdade é essa, meu caro: todos dependemos das coisas mais simples da vida, como a harmonia dos nossos movimentos peristálticos. E, quando digo todos, estou dizendo TODOS: Churchill, que salvou o Ocidente; Beethoven, que compôs a Sonata ao Luar; Pelé, que fez mil gols; Michelângelo, que esculpiu a Pietà, além de heróis contemporâneos, como Gisele Bündchen, a rainha Elizabeth, Neymar e a mulher que você ama em segredo, todos precisamos de forma indispensável e inexorável do mesmo que é básico para as ratazanas do esgoto e para os leões da Savana, como do bom funcionamento de nossos esfíncteres.
Então, é isso que nos faz o sofrimento: nos rebaixa à nossa verdadeira condição. Ninguém se acha importante diante da necessidade de introdução de um supositório de glicerina nas partes mais íntimas do seu próprio corpo. Ninguém!
Eu mesmo, em meio a meus padecimentos, tentei buscar consolo na filosofia, donde a pergunta, que me fiz enquanto gemia: “O sofrimento sublima?” Mas esse exercício não ajudou. Porque nunca me achei importante, nunca pensei que estivesse a salvo das vicissitudes por quais todos passam, então talvez não tivesse uma nova humildade a adquirir. Ou seja, volto à questão central: por que sofrer? Existe razão? Existe sentido? Ou simplesmente faz parte da condição humana?
Após duas semanas, retorno ao trabalho inteiro, leitor. Remendado, mas inteiro. E com essa dúvida na cabeça. Sofrer sublima? Não sei. Sei que prefiro não sofrer a descobrir a resposta.