Havia bebido demais na noite de sábado. Fora a um churrasco na casa do Degô e ficamos até a última esquina da madrugada conversando e rindo e dizendo bobagens, que é o que se deve fazer entre amigos. Estava bastante mareado, portanto, quando o telefone tocou perto do amanhecer, acordando-me de um sobressalto: “Quem pode ser a esta hora?”
Era do jornal:
- Houve um incêndio terrível em Santa Maria. Dezenas de mortos. Tu vais pra lá agora, de helicóptero.
Saltei da cama. Liguei o rádio na Gaúcha para me inteirar do que se passava e comecei a me preparar. Ao sair de casa, meio tonto, já sabia que os corpos das vítimas, mais de 200, tinham sido removidos para um ginásio de esportes da cidade e que ninguém podia entrar lá, a não ser as equipes de socorro e algumas autoridades. Decidi: minha missão é ingressar naquele ginásio.
Enquanto voávamos baixo, firmava convicção de que minha história estava no ginásio. Todos os outros colegas foram para a boate que se incendiou ou para os hospitais ou procuraram os familiares das vítimas. Dentro do ginásio havia algo ainda a ser contado.
Meu raciocínio foi técnico, cálculo de repórter. Foi com esse espírito que acabei conseguindo, de fato, entrar no lugar. Minha ideia era relatar profissionalmente o que encontrasse por lá. Só que, ao fincar a botina no piso do ginásio, estremeci. Percebi que o que testemunhava não era uma tragédia comum.
O ambiente, apesar de amplo, estava silencioso – os médicos, os bombeiros e os policiais falavam baixo, respeitosamente. As vítimas haviam sido dispostas em fileiras, meninas de um lado, meninos de outros. A propósito, era isso que eram: meninos. Crianças, quase. Enquanto caminhava em meio aos corredores de corpos, vi que alguns celulares tocavam entre aos pertences dos mortos resgatados pelos bombeiros. Aquele som, das campainhas insistentes e inúteis, aumentava o peso da aflição que sentia a cada passo.
Muitos não apresentavam mutilações. Morreram por inalar a fumaça tóxica que se desprendeu do incêndio. Todos eram jovens... Queriam apenas se divertir numa noite de fim de semana, assim como eu me divertira no churrasco com meus amigos, e agora estavam ali, deitados no chão duro de um ginásio. Não voltariam mais para casa.
Escrevi sobre uma menina morena que me chamou a atenção, depois até a identifiquei. O texto foi publicado no dia seguinte, 28 de janeiro. Ainda lembro dela, jamais, em minha vida de repórter, uma cena ficou impressa de forma tão inapagável na minha mente. Mas há outra visão que ainda me assombra: a dos celulares que chamavam. Penso sempre nos pais, na angústia dos pais, no pedaço de esperança em que se agarravam naquele momento, e me dói o peito. Penso num dos celulares que vibravam. Agachei-me para olhar a identificação da pessoa que ligava. E, no visor, vi brilhando uma palavra tão pequena e, ao mesmo tempo, tão imensa, tão infinita, tão desesperadora: “Mãe”.