Até sentia certa simpatia pelo príncipe Charles, mas mudei de ideia quando assisti à série The Crown. Aliás, uma obra-prima. A precisão com que a história é contada, a dose exata entre dramaticidade e realidade, as interpretações surpreendentes dos atores, uma perfeição do início ao fim.
A atriz que faz a Lady Di adquiriu até os trejeitos da triste princesinha morta sob a Ponte de l’Alma. A Margaret Thatcher tem um desempenho poderoso, chega a assustar. Mas o príncipe Charles acaba mesmerizando o espectador devido à sua personalidade atormentada, cheia de conflitos e contradições.
Primeiro, você sente pena de Charles, um rapaz que tenta inutilmente extrair amor de uma família que só se permite sentimentos protocolares. Aos poucos, porém, ele mostra que mesmo a necessidade de afeto fica subalterna à vaidade. Charles quer ser rei, e isso vale inclusive sua integridade espiritual.
No seriado, ele maltrata Diana, sente inveja do carisma e da popularidade dela, e não lhe dá espaço para ser feliz entre os gélidos Windsor. Ele vai se transformando em um pequeno monstro, à medida que suas frustrações aumentam.
Mas preciso fazer uma ponderação: e se a história fosse contada a partir do ponto de vista dele, Charles? Alguém poderia dizer, por exemplo, que o príncipe foi fiel ao seu amor a vida inteira. A mulher com quem está agora, Camila, foi a única que ele realmente amou. Mas a família não queria que se casassem, porque ela tivera outros homens. Então, deram um jeito de mandar Charles para a marinha, ele ficou fora por quase um ano e, neste período, Camila casou-se com outro. Ainda assim, Charles não a esqueceu e, quando pode, ficou com ela em definitivo.
Há traços de bom caráter aí. Outros poderiam ser colhidos, se Charles contasse a sua versão. E é aí que queria chegar. Nesse tempo em que as pessoas tornam públicas suas vidas privadas, a todo momento há um antagonismo para ser julgado, a todo momento há um litígio em análise. Quem está certo? Quem errou? Quem é o canalha?
As pessoas estão sempre apontando a canalhice de alguém, mas quem nunca foi canalha aqui? Quem garante que nunca mais será canalha outra vez? Fernando Pessoa, em seu imortal “Poema em linha reta”, pergunta:
“Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos”.
Ninguém haverá de confessar. Só que as pessoas cometem vilezas, às vezes até sem querer, por distração ou fraqueza eventual. Porém, antes do mundo interligado, uma pequena vileza, um descuido e mesmo certos erros de bom tamanho acarretariam perdas, de fato, tão-somente aos que tivessem contas públicas a prestar. Hoje, não mais. Hoje, o verdureiro anônimo pode ser condenado à execração comunitária por um deslize verbal ou por uma irritação momentânea. Hoje, todos estão sob julgamento. O homem do povo não desaparece mais na multidão, não está mais protegido pela própria insignificância. Não é, de alguma forma, uma vingança do príncipe Charles e de outras pessoas públicas? Não são mais apenas elas as possíveis vítimas do ressentimento, da maledicência e do ciúme, qualquer desconhecido tem chance de virar réu por crime comportamental.
Por isso, cuidado quando for apontar o dedo para alguém na rua. Um dia, os dedos podem estar apontados para você.