Fui visitar o Ivan Pinheiro Machado em sua charmosa livraria, ali nas amenidades do Moinhos de Vento, e decidimos tomar um expresso. Sentamo-nos à mesa do café, na rua, o ar fresco soprando para longe de nossas vias respiratórias quaisquer vírus flutuantes e insidiosos.
O garçom parou ao nosso lado e cumprimentou o Ivan, que o apresentou como só um homem dos livros poderia fazê-lo:
– Esse é o Ismael, David. “Call me Ismael!”.
E eu, a memória afiada como as travas da chuteira do Kannemann:
– Moby Dick!
Ismael sorriu:
– Tenho de ler esse livro...
É que o Ivan não resiste: cada vez que ele vai ao café e vê o Ismael, tem de declamar a primeira frase de Moby Dick, com aquela sua voz de Correspondente Esso: “Call me Ismael!”.
Moby Dick é mesmo uma preciosidade, um dos melhores romances que já li. Estive na região em que a trama se inicia. A ilha de onde parte o baleeiro Pequod é Nantucked, que fica ao lado de Martha’s Vineyard, onde os Kennedy têm uma casa de veraneio. John e Jackie muito se divertiram naquela casa, mas agora a família se cansou dela e pretende vendê-la. Se você tiver US$ 65 milhões, recomendo.
Mais tarde descobri que Melville, o autor, jamais esteve em Nantucked, embora conhecesse bem a Nova Inglaterra. Sua obra-prima foi vitimada pela própria fama. Tornada pop, foi publicada em resumos juvenis, virou gibi e até desenho animado. O melhor subproduto de todo esse sucesso foi o filme com Gregory Peck fazendo o atormentado capitão Ahab. O final é inesquecível, mas não darei spoiler.
Espero que o garçom Ismael leia uma tradução honesta do romance. Lá, no café, depois de pedirmos nossos expressos, ele sugeriu:
– Temos aqui uma empada muito boa.
Empada? Fazia tempo que não comia empada. Eis um quitute que não existe nos Estados Unidos, a não ser que você procure padarias brasileiras. Lembrei de empadas históricas que provei na velha Confeitaria Thomson, na Independência, e salivei.
– Empada! – Assenti. – É isso que eu quero! Empada!
– De galinha?
– De galinha. Empada que se preze tem de ser de galinha!
O Ismael se foi em direção à cozinha e fiquei pensando na minha empada. Há quantos anos não comia uma empada? Pois elas só aparecem em festinhas de aniversário e, essas, nunca as enfrento, nunca! Porque a empada de aniversário em geral é uma decepção – seca, fria, de pobre conteúdo. A boa empada tem de ter pelo menos meia azeitona junto com o recheio, e empada de aniversário não tem azeitona.
Então, eu queria a empada do Ismael. E, como esperava, após alguns minutos ele voltou, pressuroso, e fez aterrissar na minha frente uma pequena xícara de café fumegante e um pires com a minha empada. Tudo parecia muito bom, e adocei o café. Dei uma bicadinha. Bom, bom... Em seguida, olhei para a minha empada. Era um círculo perfeito, ela estava quentinha, havia saído do forno agora mesmo. Estendi a mão para erguê-la do prato. Tomei-a com o indicador e o polegar em pinça. Levantei-a, por fim.
E minha empada se desmanchou.
Melancolicamente, se desmanchou.
A massa frágil partiu-se em duas partes. Uma delas, cheia de recheio, caiu na minha camisa e rolou pelas calças, sujando-me toda a roupa. Gemi:
– Ooooooh!
O Ismael acudiu com um pano com álcool, mas o que me importava não era a roupa, era a decepção. Queria muito dar uma dentada naquela empada, e não consegui. Era aquele o momento, exatamente aquele, e não outro. O Ismael avisou que traria mais uma. Trouxe-a, realmente, mas não era mais a mesma coisa: a empada substituta não veio perfeitamente circular como a primeira, não parecia tão quentinha e, para arrematar, tive de comê-la com o garfo. Empadas haverão de ser comidas com a mão. Sempre!
Senti a dor do capitão Ahab em sua caça desesperada à baleia branca. Senti mais: senti a injustiça do mundo e minha própria pequenez. Afinal, de que valem a frustração e a perda se você não pode transformá-las em grande literatura?