Quando a História é escrita, tudo que aconteceu no passado ganha lógica. Porque, afinal, o historiador precisa dar ordem aos fatos. As coisas aconteceram daquela forma devido a uma fieira de ocorrências encadeadas que só poderiam ter certo desfecho, ou porque havia por trás um planejamento de alguém ou de algum grupo.
O golpe de 1964, por exemplo. Li, seguramente, mais de cem livros sobre o golpe de 1964. Eles explicam o golpe como se fosse um jogo de xadrez: cada lado pensando na sua estratégia, ponderando longamente sobre o próximo movimento.
Um desses livros eu o li nos anos 80. Foi o famoso “1964: A Conquista do Estado”, do historiador uruguaio René Armand Dreifuss. Com método e paciência, Dreifuss examina cada setor da política e da economia brasileiras, apresenta gráficos, tabelas e cópias de documentos originais que aborrecem, mas impressionam o leitor. O raciocínio dele é gramsciano, os fatos se dão de uma forma inevitável, sem a interferência do indivíduo ou do acaso.
Só que não é bem assim. Por mais planejado que tenha sido o golpe de 1964, o acaso fez diversas interferências decisivas. Sem o acaso, tudo poderia ser diferente. É difícil falar no condicional, falar em “se”, mas, neste particular, é necessário.
E “se” Jânio Quadros não tivesse apresentado aquela renúncia amalucada? O governo dele seguiria em frente, haveria eleições, e o vitorioso poderia ser alguém moderado, como Juscelino, ou de direita, como Lacerda. Então, os militares teriam mais dificuldades de mobilizar a população.
E “se” Jango resistisse, como queria Brizola? As forças legalistas não eram pequenas, o país poderia entrar em guerra civil. Mesmo com apoio dos Estados Unidos, os militares golpistas sofreriam para derrubar o governo.
A decisão de ir para a direita e não para a esquerda, um dia de chuva em vez de um dia de sol, um escorregão, uma ideia atravessada, o surgimento de uma única pessoa que tem mais energia para fazer as coisas. Muito do mundo é menos causal e mais casual.
Nesta terça-feira, no Timeline, Muricy Ramalho disse o mesmo sobre um assunto que entende muito: o futebol. Para júbilo meu. Porque eu sempre falei isso, sempre: num jogo de futebol, aquilo que DEPOIS DA PARTIDA é descrito com pormenores pelos comentaristas como resultado de uma tática ou de uma estratégia bem concebidas às vezes é tão-somente obra da iniciativa pessoal de um jogador solitário. O drible insinuante do ponta, a cabeçada certeira do centroavante, a perna levantada do goleiro, um átimo de segundo é o suficiente para mudar um planejamento metódico e o trabalho de toda uma temporada.
Assim esse enfrentamento do Grêmio contra o Santos. Na primeira partida, o Santos foi melhor e todos elogiaram a sabedoria tática de Cuca. Realmente, Cuca fortaleceu o meio-campo. Mas não foi por isso que seu time jogou tão bem. O que houve foi que o Santos teve mais vontade, correu mais, dividiu cada bola como se fosse a última, o Santos soube jogar uma partida eliminatória. O Grêmio, não. O Grêmio foi empinado e algo arrogante. Nesta quarta-feira, em São Paulo, aposto que é isso que fará a diferença: a vontade. Se o Grêmio tiver mais vontade, vencerá. E, depois, os analistas podem explicar a lógica perfeita que fez tudo acontecer como aconteceu.