Alguns amigos eu nunca mais vi. É estranho. A pessoa era tão importante na minha vida e, de repente, foi abduzida. Também, mudei muito de casa, mais de 15 vezes, e a cada mudança ia deixando coisas e gentes pelo caminho.
Na categoria de “coisas”, lembro de um sofá que ganhei quando morei pela primeira vez em Criciúma. Dividíamos o apartamento eu, a Nádia Couto e o Plisnou. Como nosso salário era modesto, gastávamos tudo com o aluguel, comida e um pouco de diversão, que ninguém é de ferro. Não sobrava muito para a mobília. Assim, fomos comprando primeiro o essencial: uma geladeira amarela e um fogão azul usados, e uma mesinha com quatro cadeiras a rodeá-la. A Nádia insistiu para pintarmos a geladeira de azul, em nome da harmonia da decoração. Eu e o Plisnou achávamos aquela despesa estética um exagero, mas concordamos com ela, em nome da harmonia da nossa convivência.
Fora isso, não havia muitos móveis mais no apartamento. Até que uma jornalista amiga, a Lenir Gomes, decidiu que nossa sala não merecia ficar tão vazia, e anunciou que nos daria de presente um sofá que não usava mais. Achei bonita a generosidade da Lenir, fiquei contente, mas, quando vi o sofá, o contentamento virou encanto. Era um sofá lindo, enorme, de couro dourado-escuro, um luxo.
– Que sofá! – eu dizia para a Nádia e o Plisnou, admirando-o, de pé, no meio da sala, com as mãos na cintura.
Eles concordavam:
– Que sofá! Que sofá!
Durante cinco anos, aquele sofá foi o personagem central do nosso apartamento. Nele descobrimos amores e tivemos desilusões, nele sorrimos muito e talvez tenhamos chorado um pouco, nele, sobretudo, fomos felizes na juventude perversa de nossos corações.
Ao pensar, agora, naquele sofá, vem-me à mente um certo joelho. Era um joelho de moça morena, um joelho de pessoa habituada à vida ao ar livre. Um joelho redondo e magro, porque joelhos podem ser gordos, mas aquele, não. Aquele era um joelho esbelto, delicado e, ao mesmo tempo, forte. Devia ter rótulas perfeitamente bem encaixadas e meniscos bem azeitados. Talvez fosse um joelho de Natalie Wood, que, segundo o Professor Ruy Carlos Ostermann, possuía os mais belos joelhos do cinema. Quando o Professor escreveu isso, aliás, fiquei muito curioso, queria ver os joelhos de Natalie Wood, mas, num tempo sem Google e YouTube, era difícil. Um bom par de joelhos poderia permanecer escondido por anos de um candidato a admirador, e assim ocorreu comigo e os joelhos de Natie. Até que um dia os vi numa foto de revista e procurei o Professor na redação de Zero Hora para cumprimentá-lo:
– O senhor é um homem com bom gosto para joelhos, Professor.
Mas, voltando àqueles joelhos dos anos 1980, conto que estávamos numa festinha no nosso apartamento e me acomodei numa ponta do sofá que a Lenir nos deu, enquanto ela, a proprietária dos joelhos, sentou-se ao meu lado. E cruzou as pernas. E sua saia subiu ao norte das coxas, lá em cima, perto do Acre. E aquele joelho surgiu em toda a sua formosura.
Não podia encará-lo muito, ficava chato, mas a todo momento espiava aquele joelho e pensava: “Deve ser tão macio...” Um pouco por instinto, outro pouco por intenção, apoiei minha mão esquerda no sofá, ao lado das pernas nuas e flexíveis da morena. Ela bebia algo e falava com alguém. Eu não pretendia tocar na perna dela, não cometeria essa ousadia, só queria ficar por perto. Assim, deixei minha mão por ali, a centímetros das coxas lisas da moça, até que ela fez um movimento rápido, descruzou as pernas e, PAM!, aterrissou sua longa perna direita exatamente sobre a minha mão esquerda. Foi quase como se ela tivesse me dado um tiro. Levei um Mandrake, fui atingido por um raio paralisante, não conseguia me mover, nem pensar. Será que ela sentia a minha mão debaixo da sua perna? Será que ela fizera aquilo de propósito? Se eu tirasse a mão, ela perceberia e talvez se enfurecesse: “Está tentando me agarrar?”. Se eu mantivesse, ela poderia perceber depois e se enfurecer da mesma forma: “Por que não tirou a mão?”. O que fazer, Nossa Senhora da Medalha Milagrosa?
Não fiz nada. Continuei ali. Imóvel. Suando. Mudo. Então, depois de algum tempo, ela girou o corpo em minha direção, olhou-me nos olhos, sorriu e, com voz de caramelo, miou:
– Amo este teu sofá.
E se levantou para pegar outro drinque. Hoje, recordo disso tudo e suspiro: também amo aquele sofá. Não deveria ter me separado dele. Em que parte do passado o deixei? Por onde andará o meu sofá? Por onde andarão meus afetos que ficaram para trás?