Pode a brutalidade ser transformada em delicadeza? Caetano Veloso conseguiu essa façanha com o documentário do qual ele é o narrador e o protagonista, “Narciso em Férias”, em que conta os dois meses de sua prisão pela ditadura militar, no fim dos anos 60. Caetano foi simples sem deixar de ser profundo, tocante sem ser piegas, racional e ao mesmo tempo emotivo. Caetano fez, do seu medo, poesia em prosa.
Em pelo menos dois trechos, senti que me marejavam os olhos ouvindo seu relato. Não porque tenha sentido pena dele, não porque Caetano tenha sofrido algum tipo de sevícia que me tenha gerado revolta. Não. Não há revolta em Caetano. Não há nem mesmo queixa. O que ele faz é narrar o que lhe aconteceu, em ordem cronológica, de maneira quase impessoal, como se estivesse falando de outro alguém.
O que Caetano consegue, e que emociona quem o vê e ouve, é interpretar o seu próprio sentimento com uma precisão e uma densidade que só alcançam pessoas de inteligência superior, que refletem com alguma isenção a respeito de si mesmas e que se conhecem muito bem.
Não é por acaso que o maior conselho da filosofia é “conhece-te a ti mesmo”, frase que estava gravada na pedra do pátio do templo de Apolo, em Delfos, e que foi tomada de empréstimo por Heráclito, Sócrates, Pitágoras, Schopenhauer e Nietzsche.
Caetano conhece a si mesmo e, por isso, soube compreender o que lhe aconteceu no tempo em que esteve detido. Por exemplo: na primeira semana de prisão, ele foi colocado em uma solitária. Não havia cama, apenas uma colcha sobre a qual se deitava e, num canto, a seus pés, a latrina. Numa das paredes, a uma altura inalcançável, abria-se uma janela gradeada por onde se imiscuía uma réstia de luz.
Durante os dias em que ali ficou, Caetano não viu nenhum outro ser humano. A comida lhe era empurrada por uma portinhola ao pé da porta de ferro. Para se distrair, ele lia e relia folhas de velhos jornais que tinham sido deixados na cela.
Caetano disse que o tempo imutável produziu um efeito curioso em sua alma: ressecou-a. Porque ele queria chorar, e não conseguia. Queria se sentir excitado e se masturbar, mas também não conseguia. Lágrimas e gozo, para Caetano, eram uma manifestação de seu próprio espírito em forma líquida, eram pedaços de sua essência mais íntima que saíam para fora de seu corpo, e agora Caetano não os tinha. Ele estava estorricado por dentro.
Gostei dessa reflexão, mas gostei ainda mais quando ele lembrou de um período em que já podia ver sua mulher, Dedé. Numa das visitas que ela lhe fez na prisão, trouxe um exemplar da revista Manchete em que havia sido publicada uma reportagem sobre a visão que os primeiros astronautas tinham da Terra, a partir do espaço. Caetano viu aquelas fotos da Terra azul envolta em nuvens e se deixou enlevar. Tempos depois, comporia uma de suas canções mais belas:
Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém não estavas nua
E sim coberta de nuvens...
Terra... Terra...
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Um homem confinado entre as paredes de uma cela, olhando para a imagem da Terra vista da vastidão do espaço. A prisão escura e a completa liberdade numa única cena. A brutalidade transformada em delicadeza.