Meu amigo Andrea Ferrini planeja voltar para a Itália assim que puder tomar a bendita vacina contra a maldita covid. Ele é florentino, mas passou metade da vida nos Estados Unidos, onde o conheci.
Andrea era dono da Bottega Fiorentina, uma pequena cantina que servia comida toscana em Brookline. Eu, a Marcinha e o Bernardo almoçávamos lá pelo menos duas vezes por semana. Oh, que saudade daquela carbonara... E reparem que quem assim suspira e sonha é um homem que não é afeito a molhos brancos. Sim, senhor, sempre considerei o molho branco uma fraude.
A propósito de fraudes, deixe-me contar: esta semana, a Marcinha pediu ravióli para um restaurante aqui de Porto Alegre. Tudo bem, o ravióli estava bem feito, o molho estava supimpa, mas sabe qual era o recheio?
RICOTA!
Francamente.
Não sou homem de comer ricota. Mas as mulheres gostam de ricota e gostam de molho branco, coisas que rejeito, a não ser nos pratos que o Andrea preparava com suas próprias mãos, em Brookline.
O Andrea era ortodoxo em relação à comida italiana. Na parede de seu restaurante havia pregado um cartaz intitulado “Meat Balls Manifesto”. Tratava-se de uma eloquente peroração contra o espaguete com almôndegas, um dos pratos mais populares dos Estados Unidos. O Andrea alegava que aquilo era invenção americana. Eu contrapunha lembrando que era invenção de ITALIANOS que se mudaram para a América, mas não adiantava. O Andrea é homem de princípios rígidos.
Certa feita ele me emprestou um livro que lhe era muito caro: as receitas da rainha Catarina de Médicis. Como o Andrea, Catarina era de Florença e, na juventude, saiu da cidade e do país. Mudou-se para a França, casou-se com o príncipe e tornou-se rainha.
Foi ela uma das maiores responsáveis pela sofisticação dos costumes franceses.
Foi ela quem ensinou os bárbaros gauleses a usar talheres à mesa.
Foi ela quem inventou... a calcinha! Yes!
Catarina apreciava cavalgadas, mas não suportava montar de ladinho, como faziam as mulheres na época. Então, para poder montar a cavalo sem que toda a corte vislumbrasse as partes pudendas reais, Catarina criou calçolas que foram as precursoras das minúsculas, rendadinhas, macias e insinuantes calcinhas do mundo moderno.
Catarina também requintou a culinária francesa, e suas receitas foram imortalizadas naquele livro que o Andrea adora. Uma vez, baseado no livro, ele chegou a dar uma palestra em Harvard sobre comida toscana.
Florença é, de fato, uma cidade admirável, o berço do Renascimento, sede de alguns dos maiores gênios da humanidade. Imagine que Michelangelo, Leonardo da Vinci e Maquiavel viveram em Florença ao mesmo tempo.
Se você olha para os três, Maquiavel parece o menos genial, mas ele conseguiu manipular os outros dois: contratou-os para pintar murais em paredes opostas do palácio do governo. Leonardo e Michelangelo, que se detestavam, ficavam praticamente de costas um para o outro, pintando cenas de batalhas vencidas pelos florentinos. Quem faria o melhor trabalho? A disputa excitou a população de Florença, que chamava a luta entre os dois titãs de “A batalha das batalhas”.
Você deve estar se perguntando quem venceu. Foi empate. Ao cabo de um ou dois anos, ambos desistiram dos trabalhos. Leonardo disse que tinha de ir para Milão, Michelangelo arrumou desculpa para ir a Roma. Ou seja: amarelaram. Os gênios também tremem.
Pois bem. É essa designação que ora me interessa: gênio. Porque a palavra “gênio” está desgastada. O gênio é o homem de capacidade e obra extraordinárias, não é qualquer um. No caso, talvez Maquiavel não fosse gênio, mas Michelangelo e Leonardo, sem dúvida, eram. Quem mais? Há lugar, na minha lista, para outro artista plástico: Van Gogh. Entram também filósofos: Jesus, Buda, Heráclito, Sócrates, Kant e Freud. Músicos? Os germânicos Beethoven, Mozart e Bach e os britânicos Lennon e McCartney. Farei uma concessão ao Peninha e ao meu ex-vizinho Jim e incluirei Bob Dylan. Já na categoria “letras”, para a fúria do Faraco, não incluo Shakespeare, incluo o russo Dostoievski e (agora a incandescente polêmica) os jornalistas americanos Edmund Wilson e Henry Louis Mencken.
E brasileiros? Que brasileiros poderiam ser considerados gênios?
Ah, por isso escrevo essa crônica, porque de brasileiros há apenas dois. Um você já adivinhou: Pelé, o gênio incomparável do futebol.
O outro é mais específico, mas é igualmente gênio. E está aqui, em Porto Alegre, pisando todos os dias nas mesmas calçadas que você pisa, comendo xis galinha no mesmo trailer em que você come: é Pedro Geromel, o gênio da zaga central. Nem Beckenbauer, nem Baresi, nem Figueroa, nem Aírton Pavilhão. O gênio da zaga central é Pedro Geromel. Por isso, alegre-se você, simples mortal: um gênio vive entre nós!