O meu amigo Andrea Ferrini, italiano de Florença, especialista na gastronomia da era dos Médicis, que por 25 anos manteve uma histórica cantina toscana em Brookline, o meu amigo Andrea Ferrini considera massa com almôndegas uma afronta. Havia um grande cartaz pregado em uma das paredes da cantina dele onde se lia um texto intitulado Meatballs Manifesto, no qual o autor repudiava massa com almôndegas, alegando que essa combinação não pertence à culinária da Velha Bota.
– Massa com almôndegas é comida americana! – protestava o Andrea, negando-se peremptoriamente a servir esse prato em seu restaurante.
Note que escrevo no tempo passado, porque o Andrea (snif) vendeu sua cantina. O nome continua o mesmo e a comida continua a mesma, mas me sinto meio órfão, porque nem sequer posso mais contestar o radicalismo do Andrea e argumentar que massa com almôndegas é, sim, comida italiana, porque foi inventada por italianos como ele que atravessaram o oceano e vieram para a “Mérica, Mérica, Mérica”.
Há outras comidas italianas criadas alhures, a mais nobre delas é o filé à parmegiana, que não é de Parma, é de São Paulo.
Esses italianos desterrados são mesmo admiráveis. São generosos, criativos e enérgicos. Escrevo sobre eles hoje porque assisti ao filme O Irlandês, que, apesar do título, trata de italianos radicados na América (Mérica, Mérica).
O irlandês protagonista do filme, que se mistura com italianos, é um assassino profissional, e não vai aí nenhum spoiler, não se aflija. Ele, bem como outros personagens da trama, existiu de verdade, em um tempo fascinante da história dos Estados Unidos, o tempo dos Kennedy, de Sinatra, de Marilyn Monroe, de Ava Gardner e outros tantos.
Há um livro que você tem de ler acerca dessa época. Sempre o recomendo. É Tabloide Americano, de James Ellroy, um diamante da literatura agressiva e mundana dos Estados Unidos. Ellroy escreveu uma continuação, 6 Mil em Espécie, mas ela não tem o mesmo vigor.
Existe toda uma produção a respeito desse tempo em que os italianos dominaram a América. O maior filme de todos os tempos, O Poderoso Chefão, é uma das pontas dessa estrela. O Irlandês, de certa forma, é filho do Poderoso Chefão.
Mas muitos já falaram e escreveram a respeito desse filme e decerto o fizeram com mais competência do que eu. Quero abordar apenas uma cena minúscula, na verdade um pedaço de cena, uns 10 ou 15 segundos no máximo, em meio às três horas e meia em que o espectador fica no cinema ou diante da TV.
Assista ao trailer de O Irlandês
Acontece na festa de aniversário de um mafioso, Joe Crazy Gallo. Esse Joe Crazy era crazy mesmo, chegou a sequestrar os próprios patrões mafiosos e sobreviveu a tamanha temeridade. Bob Dylan compôs uma música lenta e gingada contando a história dele.
Nessa festa, Joe desrespeita outro mafioso, Russel Bufalino, chamado The Quiet Don, interpretado de forma genial por Joe Pesci, que, se não ganhar o Oscar, pode mandar fechar a Academia. Pesci construiu um personagem sombrio e silencioso, como sugere seu codinome. Ele se expressa mais com silêncios e é de um breve silêncio que estou falando. Dá-se depois que Joe Gallo provoca Bufalino. O Irlandês, vivido por Robert de Niro, estava sentado à mesa com Bufalino e levantou-se para apaziguar Joe Gallo. Conseguiu e voltou. Acomoda-se diante de Pesci-Bufalino. Que não fala nada, apenas olha rapidamente nos olhos do Irlandês. E naquele olhar há ódio, há fúria e há uma decisão irrecorrível. Ali está, em uma cena rápida como um suspiro, um resumo de toda a história. O Irlandês compreende o que significa aquele olhar, lamenta o que vai ocorrer em seguida por causa dele, mas sabe o que tem de fazer.
Fará?
Veja o filme.
Os 10 segundos do olhar de Joe Pesci são 10 segundos de glória do cinema.