O que está acontecendo conosco, obviamente, é um processo de redenção. Estamos nos depurando dos nossos pecados por meio da humilhação pública e pela perda de bens materiais e espirituais que nos são caros.
Que delitos cometemos nós, brasileiros?
Ah, são tantos... Talvez a forma como tratamos os índios, aproveitando-nos da sua inocência silvícola. Talvez as inclemências da Guerra do Paraguai. Certamente os 300 anos de escravização dos negros africanos. Fizemos nossas maldades e estamos pagando por elas.
Coisas estranhas, que não podem ser casuais, vêm nos acontecendo desde a inverossímil morte de Tancredo, mas, de uns anos para cá, nossos padecimentos se agravaram. A esquerda e a direita democráticas faliram, o desemprego grassa, o Rio de Janeiro está acabando e a música nacional oscila entre o funk e o sertanejo. E o 7 a 1? Você acha que o 7 a 1 foi por acaso? Claro que não! O 7 a 1 foi o primeiro e grave sinal de que nosso patrimônio moral mais valioso nos será tomado.
Estou falando da Seleção Brasileira de Futebol.
Depois do vexame dos 7 a 1, os bolsonaristas passaram a usar a camisa canarinho como uniforme durante suas manifestações. A amarelinha de que tanto se orgulhava Zagallo, criação imortal do nosso conterrâneo Aldyr Garcia Schlee, respeitada no mundo inteiro, que fazia os adversários tremerem só de vê-la entrando em campo, a amarelinha foi conspurcada pela política. Ela havia sido de Pelé, Tostão, Rivellino, Zico, Romário e Ronaldo, e agora é dos três irmãos Bolsonaro, de Weintraub, de Olavo de Carvalho. Não dá mais para vestir a camisa amarela com naturalidade, e isso foi outro 7 a 1.
Estava chateado por esse golpe, e agora veio Regina Duarte cantando na televisão: "Todos juntos, vamos! Pra frente, Brasil, Brasil!".
Não haveria nada de mal em alguém cantar essa música, porque não era esse o hino da ditadura; o hino da ditadura não se tratava de um, mas dois, ambos cometidos por uma banda que começou se chamando The Clevers e depois se tornou Os Incríveis: Este é um País que Vai pra Frente, entoado por eles próprios, e Eu te Amo, meu Brasil, interpretado por dois irmãos cearenses, Don e Ravel.
Nós éramos pirralhos, lá no IAPI, e gozávamos dessas duas musiquinhas. No original, Os Incríveis cantavam:
"Este é um país que vai pra frente!
Ho! Ho! Ho! Ho! Ho!".
E nós cantávamos:
"Este é um país que vai pra frente!
Ha, ha, ha, ha, ha!".
Já a paródia da musiqueta de Don e Ravel era mais elaborada:
"A maconha no Brasil foi liberada
Laralalá!
Até o presidente já fumou!
Laralalá!
E eu vou continuar na minha, tomando bolinha com o governador!
Eu te amo, meu Brasil! Eu te amo!
Meu coração é de Jesus e o meu pulmão da Souza Cruz".
Dessas nós caçoávamos. Do hino do Tri, não. E foi isso que a Regina cantou, no programa de TV, o hino do Tri: "Todos juntos vamos! Pra frente, Brasil! Salve a Seleção!". Só que ela o relacionou com a ditadura. Poderia estar falando de Jairzinho, Gerson, Clodoaldo e Everaldo, mas, não, estava falando do regime militar, da tortura e dos assassinatos promovidos pelo Estado. Assim, ela não apenas dissolveu sua reputação como atriz, ela fez pior: comprometeu a história até então impecável do maior time de futebol de todos os tempos.
A taça Jules Rimet foi derretida, o hino do Tri grudou-se à ditadura, a Alemanha nos meteu 7 a 1, os bolsonaristas aviltaram a canarinho. Perdemos a Seleção Brasileira. Estamos perdendo até nossos símbolos. O que mais eles querem? Felizmente, Machado de Assis e Rubem Braga já morreram. Mas Pelé e Roberto Carlos ainda vivem. Temos que ter cuidado com os regicidas que nos rondam. Protejam os reis! Salvem pelo menos os reis!