Em tempos de Copa América e, até semana passada, de Copa do Mundo feminina, a imagem viralizou em grupos de WhatsApp e redes sociais: uma mulher não identificada veste a camiseta da Seleção Brasileira com um aviso preso em torno do pescoço: "Camisa utilizada exclusivamente para fins esportivos".
Aviso semelhante talvez deixasse Camila Gamino da Costa mais aliviada no domingo passado, quando saiu de casa, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, para ir ao supermercado ainda fardada, logo após torcer pelo time de Marta.
— Na Copa do Mundo, antes da eleição, já tinha rolado um certo desconforto. Mas dessa vez confesso que me senti muito estranha. Muito mesmo. Talvez porque não houvesse nenhuma decoração nos bares para o jogo, a minha sensação era de que as pessoas estavam me olhando e achando que eu era eleitora do Bolsonaro — conta a pedagoga de 32 anos, que não pretende voltar a usar a camisa tão cedo.
A associação atual entre a camiseta da Seleção Brasileira e a política vem desde 2015, quando a canarinho começou a aparecer nas manifestações pedindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Porém, o resultado da eleição presidencial que consagrou Jair Bolsonaro foi determinante para que a camiseta amarela se tornasse, em medidas muito próximas, símbolo de orgulho e ojeriza. Há divergências se o uso da camisa criada pelo gaúcho Aldyr Schlee foi intencional ou não.
— Na minha opinião, foi meio por acaso. Foi de propósito que as pessoas optaram por se vestir de verde e amarelo em oposição ao vermelho do PT, mas talvez a camiseta da Seleção era o que elas já tinham em casa, ou que acharam de verde e amarelo para comprar em uma loja naquele momento — declara o vereador Felipe Camozzato (Novo), presença habitual nas manifestações políticas no Parcão.
Penso que a camisa verde e amarela hoje simboliza o grande time de cidadãos brasileiros que torce e luta por um país melhor, mais igualitário, justo, livre e sem corrupção. Essa é a grande seleção brasileira hoje
CARLA ROJAS
psicóloga de 56 anos
Se começou por conveniência, pode ter ganhado um significado paralelo ao longo do tempo. A psicóloga Carla Rojas, 56 anos, não tinha a camisa por não dar importância para a Seleção. Mas comprou justamente para ir às manifestações:
— Para mim, não tem nada a ver com futebol. Para mim, ela simboliza o grande time de cidadãos brasileiros que torce e luta por um país melhor. Essa é a grande seleção brasileira, não os jogadores da Seleção Brasileira de futebol. Usamos as cores do país por patriotismo. Mais do que eles, inclusive — opina Carla.
Um dos sócios da loja Brechó do Futebol, que compra camisetas usadas oficiais para revender, Carlos Caloghero observou esse mesmo fenômeno: a camisa do Brasil passou a ser procurada mais para fins políticos do que futebolísticos.
Sinceramente, acho muito improvável que isso mude tão cedo. Para mim, ainda tem um significado ruim. Talvez voltemos a ver algumas camisas na rua, mas não tanto quando veríamos se elas não tivessem sido acolhidos pela extrema direita
CAMILA GAMINO DA COSTA
pedagoga de 32 anos
— No dia do show do Roger Waters (em cuja apresentação havia menção contra o presidente no telão), por exemplo, vendi duas para um cara que claramente demonstrava não entender nada de futebol. Comprou para ele e para o sobrinho marcarem posição no show. Hoje, dois dias antes do jogo do Brasil, não vendi nenhuma — exemplifica Carlos, mas fazendo uma ressalva: — A camisa da Seleção sempre vendeu mal, o pessoal de Porto Alegre não se importa com a Seleção como no Rio, por exemplo.
Por lá, será que a política também impregnou na amarelinha? Segundo o jornalista e escritor Sérgio Rodrigues, com toda certeza. Estudioso da história do futebol brasileiro, que serve de pano de fundo para o romance O Drible, ele declara nunca ter visto um "sequestro" semelhante de um símbolo do futebol. Mesmo no Rio de Janeiro, casa da Seleção.
— Colaborou também coincidir com uma fase de antipatia pelo time dentro de campo. Pela Copa, pelo Neymar etc. Então, quem não se identificava politicamente encontrou mais um motivo para parar de usar. Não lutou pelo direito de vestir a camiseta amarela. Mas a gente vê que, com um mínimo de incentivo, isso já melhora. O time feminino, agora, por exemplo, já empolgou. E aí tem umas saídas curiosas, como torcer com a camisa azul — observa o escritor.
Outra alternativa recente é a camisa branca, relançada nesta Copa América em comemoração ao sul-americano de 1919. O uso da camisa na partida de estreia contra a Bolívia motivou um texto em protesto do colunista de ZH Nilson Souza, publicado na quarta-feira:
"Todos perdemos quando brasileiros se voltam contra brasileiros. Nossa bandeira, nossos símbolos e nossas cores são uma propriedade coletiva, representam o país, e não apenas determinados segmentos da sociedade. (...) Nesse contexto, a camisa canarinho funciona como identidade visual do país e ainda detém o poder mágico de pacificar corações e mentes."
Será mesmo que ainda detém? Talvez alguns gols nesta quinta-feira, em solo porto-alegrense, nos ajudem a responder.