Os americanos comem manteiga de amendoim. Eles adoram isso. Esta semana mesmo, a Gail, vizinha do térreo, saiu do apartamento dela levando, nos braços, um pote de manteiga de amendoim do tamanho de um balde. Eu estava no saguão, abrindo inocentemente a caixa de correspondência. Ela parou bem na minha frente com aquele pote na mão e disse:
– Trago manteiga de amendoim para ti e para tua família.
Tive vontade de dizer que prefiro um tratamento de canal a manteiga de amendoim, mas olhei para a Gail e vi que ela estava radiante por me dar o presente. Ela é uma senhora de uns 60 anos, embora pareça menos. Tem cabelos curtos, pintados de loiro. É muito simpática.
Gail foi casada a vida inteira com um homem bem mais velho do que ela. Eram felizes, tinham vida social intensa e um grupo de bons amigos, mas, quando ele entrou na casa dos 90 anos, entrou também em acentuada decadência física. De uma hora para outra, o velhinho não conseguia mais caminhar. Aos poucos, suas energias foram se esvaindo, até que só mexia, de fato, a cabeça, nem falar falava direito. Gail passou quatro anos cuidando dele com devoção. Nos Estados Unidos, serviços profissionais são muito caros. Então, ela mesma era enfermeira do marido. Trabalho pesado.
Um dia, eu entrei no prédio e a Gail veio correndo em minha direção, gritando:
– Me ajuda! Me ajuda! Meu marido caiu!
Corri ao apartamento dela. O velhinho havia escorregado da cadeira e jazia no chão da sala, imóvel. “Será que morreu?”, pensei. Mas ele estava vivo. Levantei-o com alguma dificuldade e o acomodei em uma poltrona. Ele agradeceu bem baixinho, só uma réstia de voz. Falei para a Gail que, qualquer coisa, me chamasse. E me fui, sentindo pena dela.
Pouco tempo depois dessa ocorrência, nós nos preparávamos para viajar para o Brasil. Ficaríamos um mês fora. A Marcinha estava com um grande buquê de rosas em casa (sou um romântico, você sabe) e não queria pô-las no lixo. Decidiu dá-las para a Gail. Desceu até o térreo e bateu na porta do apartamento dela com o buquê nas mãos. A Gail abriu, viu as rosas, sorriu de lado e disse:
– Que delicado da sua parte…
O marido dela morrera naquele dia.
Lamentei pela Gail, mas ela reagiu bem. Começou a viajar de vez em quando e retomou a vida social. Volta e meia, passo pela frente de sua casa e vejo-a bebericando drinques com as amigas na varanda. Às vezes, ela vai aos convescotes do Jim, aquele meu vizinho que é louco pelo Bob Dylan e que faz churrasco todos os dias, depois que acaba o longo inverno bostoniano. O Jim é solteiro e deve ter a mesma idade que ela. Por que os dois não se juntam? Sempre cogitei isso (romântico, romântico).
Agora que a Gail estava me oferecendo aquele pote gigante de manteiga de amendoim, eu pensava: por que ela não entrega esse troço para o Jim? Ele é americano, ele decerto gosta de manteiga de amendoim. Porque eu, confesso, eu odeio. Manteiga de amendoim é uma pasta doce, mas DOCE, que você come uma colherada e se arrepia todo.
– Vocês gostam de manteiga de amendoim? – perguntou-me a Gail, toda animada.
– Claro… – respondi, tentando sorrir.
Ela empurrou aquele pote na minha direção. Peguei. Era pesado.
– Quando visitar vocês, vamos comer sanduíches de manteiga de amendoim.
Senti um calafrio na espinha só de pensar naquela possibilidade. Agora estou com um maldito pote de manteiga de amendoim em casa. Não posso me desfazer dele. Vai que a Gail invente de bater aqui com um jarro de limonada, propondo um lanche com sanduíche de manteiga de amendoim. Lembrei-me de Rimbaud, que chorava:
“Por delicadeza,
Perdi minha vida”.
Ah, as convenções sociais! Ah, a noblesse oblige! O que temos de suportar para viver em civilização! Certas estão as novas lideranças mundiais, que trabalham para o Ocidente voltar à barbárie. Com mais um pouco da nova política, o baixo calão será elevado às alturas, ninguém terá de ir à escola e você não precisará fazer coisas como comer manteiga de amendoim para ser gentil com a vizinhança. Que a nova política salve o mundo da boa educação!