Gosto de filmes antigos.
A Marcinha, não. Mesmo assim, de vez em quando, tento apresentar-lhe uns clássicos. Ela topa, eu boto o filme e apago a luz. Ela se estica no sofá, acomoda a cabeça na almofada, suspira de satisfação e, nem bem aparece o nome do diretor, já está ressonando.
Irritante.
Mas, neste fim de semana, avisei:
– Vou escolher um filme que vai te manter alerta o tempo todo.
Queria um que vi no cinema há mais de 30 anos e que, faz tempo, pretendia rever: Depois de Horas. Esse é considerado um filme menos importante de Scorsese, mas eu gostei muito.
Tenho um sistema infalível de avaliação de filmes: se saio do cinema pensando na história e falando sobre ela depois, durante o jantar, o filme é bom. Se, no dia seguinte, repasso cenas e comento a respeito, é muito bom. Se, anos mais tarde, lembro do que senti no cinema, é ótimo.
No caso de Depois de Horas, ainda recordava a sensação que tive ao assistir ao filme: de tensão mesclada com divertimento. O protagonista é o tal “cara comum”, um jovem solteiro que trabalha como programador de computadores. Ele leva uma vida meio sem graça, até que conhece, em um café, uma loirinha interessante, interpretada por Rosanna Arquette, então em horário nobre. Ela lhe dá o número do telefone. Ele anota em um livro que está lendo e, à noite, liga. Já é tarde, mas ela pergunta se ele não quer vê-la em seu apartamento, no SoHo. Ele aceita, vai e, a partir daí, a ação se desenrola em ritmo vibrante, você fica com a atenção grudada na tela.
Um dos personagens mais surpreendentes é o cenário em que se dá a trama: o SoHo. Quando vou a Nova York, sempre fico no SoHo, precisamente na região onde Paul vive aquela noite louca.
O SoHo de Nova York é uma abreviação de South of Houston Street. Ou: o bairro que se situa ao sul da Rua Houston. Mas é também uma brincadeira com o Soho de Londres, um lugar trepidante, com uma das mais agitadas vidas noturnas da Europa e muitíssimo importante para nós, porque foi lá que foi inventada essa glória do gênio humano: a minissaia.
Hoje, o SoHo é um dos locais mais caros e badalados do mundo, cheio de lojas elegantes e restaurantes requintados. Estive lá há cerca de um mês e, ao passar pela frente de um de seus edifícios históricos, reparei que estava acontecendo uma open house de um apartamento para alugar. Por curiosidade, decidi conferir que tal. Bem. Era um apartamentinho encarapitado no quarto andar, o qual acessamos por escadas íngremes, porque não tinha elevador. Era composto por um banheiro minúsculo e um quarto menos do que minúsculo, tanto que a cama ocupava todo o espaço entre uma parede e outra. A sala era um pouco maior, só que, numa parede, estava instalado o arremedo de cozinha: um fogão de duas bocas, uma pia e uma geladeira menor do que uma televisão. Sabe quanto o aluguel? US$ 2,8 mil. Dois mil e oitocentos dólares! Ou: R$ 12 mil!
Por quê? Porque fica no SoHo.
Mas, ao rever o filme de Scorsese, percebi que nos anos 1980 o SoHo não era nada “cult”: o lixo se acumulava pelas ruas desertas e o perigo rondava cada esquina. Numa das cenas, o protagonista se homizia em uma escada de incêndio e, de lá, testemunha uma mulher matando o marido a tiros depois de uma discussão.
O que aconteceu, para o SoHo se transformar tanto assim? Curiosamente, no país campeão do capitalismo, não foi pela gestão, nem pelo planejamento.
O que aconteceu, para o SoHo se transformar tanto assim? Curiosamente, no país campeão do capitalismo, não foi pela gestão, nem pelo planejamento. Foi pela arte. Artistas e intelectuais mudaram-se para os lofts e pequenos apartamentos do bairro, que se encheu de galerias e bares descolados, atraindo gente, primeiro, de toda a cidade e, mais tarde, de todo o planeta.
Nova York fez o que deve fazer uma cidade: aproveitou a vocação de uma de suas regiões e a estimulou. Por que Porto Alegre não pode ser assim? Por que não podemos, nós também, desenvolver o que já nos é naturalmente bom? Por que lugares cheios de personalidade, como o Centro e a Cidade Baixa, não podem se tornar “cults”?
Era no que eu pensava, enquanto o filme terminava, e a Marcinha dormia no sofá.